Servidor: Responsabilidade
Civil
(Transcrição
do Informativo STF nº 337)
MS 24182/DF
- RELATOR : MIN. MAURÍCIO CORRÊA - Acórdão publicado
no DJ 27/02/2004
Relatório:
Cuida-se de mandado de segurança impetrado por José Veiga Filho
contra ato da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.
2. Submetido
a processo administrativo disciplinar, o impetrante, servidor daquela Casa
Legislativa, foi considerado culpado pelo desaparecimento de 187 (cento
e oitenta e sete) talonários de tíquete-alimentação,
que estavam sob sua guarda e responsabilidade.
3. Foi-lhe
aplicada a penalidade de suspensão, convertida em multa, além
de ser-lhe cobrada indenização decorrente da perda dos mencionados
talonários, mediante descontos mensais na folha de pagamento.
4. Inconformado,
apresentou pedido de reconsideração, não recebido pelo
Diretor-Geral da Câmara dos Deputados, por incabível no âmbito
de processo administrativo disciplinar.
5. Contra
esse ato impetrou mandado de segurança perante a Justiça Federal,
Seção Judiciária do Distrito Federal, requerendo fossem
sustados os descontos e apreciado o pedido de reconsideração.
6. O Juiz
Federal deferiu o pedido liminar, determinando a suspensão dos referidos
descontos enquanto a questão estivesse sub judice (fls. 16/18). No
julgamento do mérito, ouvido o Ministério Público, que
opinou pelo deferimento do writ, concedeu-se em parte a segurança
para que, nos termos do artigo 177 da Lei 8.112/90, o processo fosse remetido
à autoridade administrativa competente e que não se praticasse
ato algum de punição ou de cobrança de indenização,
até decisão final do processo administrativo (fls. 19/26).
7. Em cumprimento
a essa decisão, o Diretor-Geral nomeou uma comissão destinada
a efetuar a revisão do processo disciplinar de que trata o dispositivo
legal em que se fundou a ordem judicial. A comissão concluiu pela
inviabilidade de ser reconsiderada a decisão prolatada e recomendou
a submissão do assunto ao Primeiro-Secretário da Câmara
dos Deputados, que emitiu parecer, aprovado pela Mesa Diretora - ato ora impugnado
-, ratificando, em todos os seus termos, a decisão do Diretor-Geral,
que ensejara o referido mandado de segurança impetrado junto à
Justiça Federal (fls. 12/14).
8. Contra
essa decisão da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, que
aprovou o parecer de seu Primeiro-Secretário, é que se insurge
o presente writ, no qual o impetrante sustenta que a Administração
daquela Casa Legislativa interpretou erradamente a ordem emanada do Juiz
Federal, que, embora tenha feito referência ao artigo 177 da Lei 8.112/90,
não poderia determinar a revisão do processo, dado que esse
não foi o pedido formulado no mandamus. Além disso, a revisão
somente incide sobre feitos transitados em julgado.
9. Sendo assim,
a autoridade coatora deveria examinar o pedido de reconsideração,
devolvendo à jurisdição administrativa o pleno conhecimento
sobre a matéria abordada, podendo a autoridade resolver questões
sobre fatos idênticos em iguais circunstâncias.
10. Ademais,
se há imprecisão na sentença acerca dos procedimentos
administrativos a serem adotados, dela não remanesce dúvida
quanto ao fato de que não poderia a autoridade coatora, à
míngua de decisão judicial e sem respaldo legal expresso, invadir
o patrimônio do servidor para recuperar prejuízo que alega
ter sofrido.
11. Dessa
forma, tendo em vista a suposta ilegalidade das consignações
e da redução de seus vencimentos, que têm natureza alimentar,
requer a concessão da medida liminar e a posterior confirmação
da segurança, "para interromper definitivamente a tentativa espúria
de autotutela promovida no ato impugnado, determinando-se à autoridade
coatora que busque amparo do Judiciário se realmente acredita na
existência de responsabilidade do impetrante na situação
que originou o presente feito, conclusão que não conta, de
modo algum, com a aquiescência da parte prejudicada" (fl. 10).
12. Com fundamento
no artigo 46 da Lei 8.112/90, na melhor doutrina e na jurisprudência
do STJ, deferi o pedido de medida liminar por vislumbrar presentes o fumus
boni juris e o periculum in mora, caracterizado este último pela
natureza alimentar da remuneração do servidor.
13. A autoridade
impetrada prestou informações, aduzindo, preliminarmente, que
a Mesa da Câmara dos Deputados não tem legitimidade para figurar
no pólo passivo da lide, pois não determinou o referido desconto
em folha, mas apenas apreciou recurso interposto pelo impetrante contra decisão
da Comissão de Inquérito e do Diretor-Geral.
14 No mérito,
sustenta que a penalidade imposta obedeceu à regra prevista no artigo
46 da Lei 8.112/90.
15. O Ministério
Público Federal opina pela concessão da segurança (fls.
62/67).
É o
relatório.
Voto : Examino
a preliminar de ilegitimidade passiva da Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados.
2. Em cumprimento
à decisão judicial proferida no mandado de segurança
impetrado perante a Justiça Federal, o Diretor-Geral nomeou uma comissão,
que concluiu pela inviabilidade de ser reconsiderada a decisão anteriormente
prolatada. Submetida a questão ao Primeiro-Secretário, este
emitiu parecer, que foi aprovado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados,
proferindo, assim, decisão, que foi corretamente considerada ato
coator pelo impetrante.
3. Ora, segundo
a melhor definição, "coator é a autoridade superior
que pratica ou ordena concreta e especificamente a execução
do ato impugnado e responde pelas suas consequências administrativas"
(fl. 65), como de fato ocorreu na espécie em que a determinação
para os descontos na folha de pagamento do impetrante foi ordenada pela
Mesa da Câmara dos Deputados, cumprindo-se, ademais, o que está
definido no artigo 15 de seu Regimento Interno, mais precisamente, em seu
inciso XVI, de que a ela cabe "decidir conclusivamente, em grau de recurso,
as matérias referentes ao ordenamento jurídico de pessoal
e aos serviços administrativos da Câmara".
Não
é, pois, o caso de acolher a preliminar de ilegitimidade passiva
da autoridade impetrada.
4. O mérito
da controvérsia consiste no exame da legalidade do desconto, em folha
de pagamento, de parcelas mensais decorrentes da condenação
do impetrante, em processo administrativo disciplinar, a ressarcir ao erário
o valor do prejuízo apurado com o desaparecimento de 187 talonários
de tíquetes-alimentação.
5. O artigo
127 da Lei 8.112/90 enumera as penalidades a que estão sujeitos os
servidores públicos em situações dessa espécie:
advertência; suspensão; demissão; cassação
de aposentadoria ou disponibilidade; destituição de cargo
em comissão; e destituição de função
comissionada.
6. Note-se
que a lei não prevê a auto-executoriedade pura e simples da
responsabilidade civil do servidor que a Administração entenda
como devida. É verdade que tanto a doutrina quanto a jurisprudência
têm entendido que certos atos são próprios do poder
administrativo, na execução dos quais é irrecusável
a auto-executoriedade, como os decorrentes do poder de polícia.
7. Há,
porém, determinados atos "que lhe [à Administração
Pública] são impróprios e, por isso mesmo, dependentes
da intervenção de outro poder, como ocorre com a cobrança
contenciosa de uma multa, que em hipótese alguma póderia ficar
a cargo exclusivo dos órgãos administrativos" (Hely Lopes
Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 23ª ed., Ed. Malheiros,
SP, p. 142).
8. Não
se pode olvidar que a Constituição Federal prevê a responsabilidade
objetiva apenas do Estado (CF, artigo 37, § 6º), impondo ao servidor,
havendo culpa ou dolo na prática do ato lesivo, a obrigação
de reparar o dano causado ao erário, sempre, porém, com a
observância dos princípios do contraditório e da ampla
defesa (CF, artigo 5º, LV). A apuração, porém,
do fato culposo ou doloso, nas hipóteses que fogem às atividades
específicas da Administração, deve ocorrer no âmbito
da jurisdição civil, pois a Constituição reservou
exclusivamente ao Poder Judiciário, a função jurisdicional
(CF, artigo 5º, XXXV). É o que ocorre, por exemplo, com a cobrança
de dívidas fiscais e multas.
9. Assim sendo,
uma vez comprovado no processo administrativo que o servidor praticou falta
funcional e ainda causou dano patrimonial ao Estado, por culpa ou dolo,
caberá à comissão propor à autoridade competente
a aplicação de uma das penalidades previstas no referido artigo
127, pois não há dúvida da competência da Administração
para apurar e punir os servidor por suas faltas de natureza administrativa.
A pena de suspensão aplicada, convertida em multa na forma da lei
8112/90, é passível de execução pela própria
Administração, sendo tal ato legítimo.
10. Já
a obrigação de indenizar os cofres públicos, no caso
concreto pelo prejuízo decorrente do desaparecimento dos talonários
citados, advém da responsabilidade civil do servidor, e poderá
até ser resolvida mediante desconto em folha, mas desde que haja
a aquiescência do servidor. Caso contrário, como aqui ocorre,
cabe à Administração, propor ação de indenização
contra o responsável. A Lei 8.112/90, ao reportar-se à responsabilidade
civil dos servidores públicos da União (artigo 121 e seguintes),
disciplina a forma de atuação da Administração,
em tais casos, tendo em vista a necessidade de submeter ao Poder Judiciário
a confirmação, ou não, do ressarcimento, apurado na
esfera administrativa. Nesse sentido a doutrina de Ivan Barbosa Rigolin.
11. Sobre
a forma de proceder em situações dessa natureza, esclarece
mestre Hely Lopes Meirelles ser válido o desconto em folha "inclusive
na hipótese prevista no § 6º do artigo 37 da CF, mas, em
qualquer caso, é necessária a concordância do responsável,
porque a Administração não pode lançar mão
dos bens de seus servidores, nem gravar unilateralmente seus vencimentos,
para ressarcir-se de eventuais prejuízos. Faltando-lhe esta aquiescência,
deverá recorrer às vias judiciais, quer propondo ação
de indenização contra o servidor, quer executando a sentença
condenatória do juízo criminal ou a certidão da dívida
ativa (no caso de alcances e reposições de recebimentos indevidos).
12. Condenar
o impetrante à pretendida indenização, sem a sua permissão,
seria violar o seu direito individual, garantido constitucionalmente de
não ser privado de seus bens sem o devido processo legal (CF 88,
artigo 5º, LIV). Não se aplica, no caso, a auto-executoriedade
do procedimento administrativo, dado que a competência da Administração
acha-se restrita às sanções de natureza administrativa
em face do ato ilícito praticado pelo servidor, não podendo
alcançar, compulsoriamente, as conseqüências civis e penais,
estas sujeitas à decisão do Poder Judiciário.
13. As disposições
do artigo 46 da Lei 8.112/90, longe de autorizar a Administração
a executar a indenização apurada em processo administrativo,
apenas regulamenta a forma como poderá ocorrer o pagamento pelo servidor,
logicamente após sua concordância com a conclusão administrativa
ou a condenação judicial transitada em julgado.
14. Resta,
portanto, à Administração recorrer às vias ordinárias
para obter o ressarcimento do prejuízo apurado no processo administrativo,
aplicando-se, por analogia, os procedimentos previstos na Lei 8.429/92, que
regula a apuração dos atos de improbidade administrativa praticados
por servidores públicos.
Ante essas
circunstâncias, confirmando a liminar antes concedida, defiro a segurança.
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