RE 222368
Recte : Consulado
Geral do Japão
Recdo: Espólio
de Iracy Ribeiro de Lima
DJ 08/03/2002
EMENTA: IMUNIDADE
DE JURISDIÇÃO. RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. LITÍGIO
ENTRE ESTADO ESTRANGEIRO E EMPREGADO BRASILEIRO. EVOLUÇÃO DO
TEMA NA DOUTRINA, NA LEGISLAÇÃO COMPARADA E NA JURISPRUDÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: DA IMUNIDADE JURISDICIONAL ABSOLUTA À
IMUNIDADE JURISDICIONAL MERAMENTE RELATIVA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO
NÃO CONHECIDO.
- O Estado estrangeiro
não dispõe de imunidade de jurisdição, perante
órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar
de causa de natureza trabalhista. Doutrina. Precedentes do STF (RTJ 133/159
e RTJ 161/643-644).
- Privilégios
diplomáticos não podem ser invocados, em processos trabalhistas,
para coonestar o enriquecimento sem causa de Estados estrangeiros, em injusto
detrimento de trabalhadores residentes em território brasileiro, sob
pena de essa prática consagrar inaceitável desvio ético-jurídico,
incompatível com o princípio da boa-fé e com os grandes
postulados do direito internacional.
DECISÃO:
Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão,
que, proferido pelo E. Tribunal Superior do Trabalho, julgou procedente, em
sede recursal, reclamação trabalhista ajuizada, por empregada
brasileira, contra o Consulado Geral do Japão.
A decisão
proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho, em sede de recurso de revista,
interposto pelo Consulado Geral do Japão, restou consubstanciada em
acórdão assim ementado (fls. 120):
"ESTADO ESTRANGEIRO
- IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO Ainda que se reconheça que
o artigo 114, caput, da Constituição da República encerra,
apenas, uma regra de competência quanto aos entes de Direito Público
externo, por não se poder admitir que o legislador constituinte dispusesse
sobre a imunidade de jurisdição, todavia, as Convenções
de Viena não asseguram essa imunidade, que se assentava nos Direitos
das Gentes, de observância uniforme no plano internacional. Entretanto,
a comunidade internacional, com a quebra do princípio por alguns países,
não mais observa essa diretriz, quando o ente de Direito Público
externo nivela-se ao particular, em atos de negócio ou de gestão.
A imunidade persiste, pois, em se tratando de atos de império. Recurso
conhecido e a que se nega provimento."(grifei)
Cumpre ressaltar,
desde logo, que a controvérsia suscitada na presente causa, consistente
na discussão relativa à imunidade jurisdicional de Estados
estrangeiros perante o Poder Judiciário nacional, revela-se impregnada
do mais alto relevo jurídico.
Como se sabe,
a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros derivava,
ordinariamente, de um princípio básico - o princípio
da comitas gentium - consagrado pela prática consuetudinária
internacional, assentado em premissas teóricas e em concepções
políticas, que, fundadas na essencial igualdade entre as soberanias
estatais, legitimavam o reconhecimento de que
par in parem non
habet imperium vel judicium, consoante enfatizado pelo magistério
da doutrina (JOSÉ FRANCISCO REZEK, "Direito Internacional Público",
p. 173/178, itens ns. 96 e 97, 7ª ed., 1998, Saraiva; CELSO DUVIVIER
DE ALBUQUERQUE MELLO, "Direito Constitucional Internacional", p. 330/331,
item n. 3, 1994, Renovar; ALFRED VERDROSS, "Derecho Internacional Publico",
p. 171/172, 1972, Aguilar, Madrid; JACOB DOLINGER, "A Imunidade Estatal à
Jurisdição Estrangeira", in "A Nova Constituição
e o Direito Internacional", p. 195, 1987, Freitas Bastos; JOSÉ CARLOS
DE MAGALHÃES, "Da Imunidade de Jurisdição do Estado
Estrangeiro perante a Justiça Brasileira", in "A Nova Constituição
e o Direito Internacional", p. 209/210, 1987, Freitas Bastos; AMILCAR DE
CASTRO, "Direito Internacional Privado", p. 541/542, item n. 295, 4ª
ed., 1987, Forense, v.g.).
Tais premissas
e concepções - que justificavam, doutrinariamente, essa antiga
prática consuetudinária internacional - levaram a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal, notadamente aquela que se formou sob a égide
da revogada Carta Política de 1969, a emprestar, num primeiro momento,
caráter absoluto à imunidade de jurisdição instituída
em favor dos Estados estrangeiros (RTJ 66/727 - RTJ 104/990 - RTJ 111/949
- RTJ 116/474 - RTJ 123/29).
Essa orientação,
contudo, sofreu abrandamentos, que, na vigência da presente ordem constitucional,
foram introduzidos pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da
Apelação Cível 9.696-SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES (RTJ
133/159) e do Ag 139.671-DF (AgRg), Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 161/643-644).
Em função
dessa nova orientação, a jurisprudência firmada pelo
Supremo Tribunal Federal, tratando-se de atuação de Estado
estrangeiro em matéria de ordem privada, notadamente em conflitos
de natureza trabalhista, consolidou-se no sentido de atribuir caráter
meramente relativo à imunidade de jurisdição, tal como
reconhecida pelo direito internacional público e consagrada na prática
internacional.
Esse entendimento
jurisprudencial, formulado sob a égide da vigente Constituição,
foi bem sintetizado pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do
Ag 139.671-DF (AgRg), Rel. Min. CELSO DE MELLO, ocasião em que esta
Corte proferiu decisão unânime, consubstanciada em acórdão
assim ementado:
"A imunidade
de jurisdição do Estado estrangeiro, quando se tratar de litígios
trabalhistas, revestir-se-á de caráter meramente relativo e,
em conseqüência, não impedirá que os juízes
e Tribunais brasileiros conheçam de tais controvérsias e sobre
elas exerçam o poder jurisdicional que lhes é inerente.
O novo quadro
normativo que se delineou no plano do direito internacional, e também
no âmbito do direito comparado, permitiu - ante a realidade do sistema
de direito positivo dele emergente - que se construísse a teoria da
imunidade jurisdicional relativa dos Estados soberanos, tendo-se presente,
para esse específico efeito, a natureza do ato motivador da instauração
da causa em juízo, de tal modo que deixa de prevalecer, ainda que excepcionalmente,
a prerrogativa institucional da imunidade de jurisdição, sempre
que o Estado estrangeiro, atuando em matéria de ordem estritamente
privada, intervier em domínio estranho àquele em que se praticam
os atos jure imperii. Doutrina. Legislação comparada. Precedente
do STF. A teoria da imunidade limitada ou restrita objetiva institucionalizar
solução jurídica que concilie o postulado básico
da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro com a necessidade de fazer
prevalecer, por decisão do Tribunal do foro, o legítimo direito
do particular ao ressarcimento dos prejuízos que venha a sofrer em
decorrência de comportamento imputável a agentes diplomáticos,
que, agindo ilicitamente, tenham atuado more privatorum em nome do País
que representam perante o Estado acreditado (o Brasil, no caso).
Não se revela
viável impor aos súditos brasileiros, ou a pessoas com domicílio
no território nacional, o ônus de litigarem, em torno de questões
meramente laborais, mercantis, empresariais ou civis, perante tribunais alienígenas,
desde que o fato gerador da controvérsia judicial - necessariamente
estranho ao específico domínio dos acta jure imperii - tenha
decorrido da estrita atuação more privatorum do Estado estrangeiro
(...)." (RTJ 161/643-644, Rel. Min. CELSO DE MELLO - grifei)
Uma das razões
decisivas dessa nova visão jurisprudencial da matéria deveu-se
ao fato de que o tema da imunidade de jurisdição dos Estados
soberanos - que, antes, como já enfatizado, radicava-se no plano dos
costumes internacionais - passou a encontrar fundamento jurídico em
convenções internacionais (a Convenção Européia
sobre Imunidade dos Estados de 1972) ou, até mesmo, consoante informa
LUIZ CARLOS STURZENEGGER (RDA 174/18-43), na própria legislação
interna de diversos Estados, como os ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (Foreign
Sovereign Immunities Act de 1976), o REINO UNIDO (State Immunity Act de 1978),
a AUSTRÁLIA (Foreign States Immunities Act de 1985), CINGAPURA (State
Immunity Act de 1979), a REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL (Foreign
States Immunities Act de 1981), o PAQUISTÃO (State Immunity Act de
1981), o CANADÁ (State Immunity Act de 1982) e a República Argentina
(Ley nº 24.488/95, art. 2º), exemplificativamente.
O novo quadro
normativo que se delineou no plano do direito internacional, e também
no âmbito do direito comparado, permitiu - ante a realidade do sistema
de direito positivo dele emergente - que se construísse, inclusive
no âmbito da jurisprudência dos Tribunais, e em função
de situações específicas, a teoria da imunidade jurisdicional
meramente relativa dos Estados soberanos.
É por
essa razão - já vigente o novo ordenamento constitucional brasileiro
- que tanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 133/159
- RTJ 161/643-644) quanto a do Superior Tribunal de Justiça (RSTJ 8/39
- RSTJ 9/53 - RSTJ 13/45) consolidaram-se no sentido de reconhecer que, modernamente,
não mais deve prevalecer, de modo incondicional, no que concerne a
determinadas e específicas controvérsias - tais como aquelas
de direito privado - o princípio da imunidade jurisdicional absoluta,
circunstância esta que, em situações como a constante
destes autos, legitima a plena submissão de qualquer Estado estrangeiro
à jurisdição doméstica do Poder Judiciário
nacional.
É bem
verdade que o Supremo Tribunal Federal, tratando-se da questão pertinente
à imunidade de execução (matéria que não
se confunde com o tema concernente à imunidade de jurisdição
ora em exame), continua, quanto a ela (imunidade de execução),
a entendê-la como sendo prerrogativa institucional de caráter
mais abrangente, ressalvadas as hipóteses excepcionais (a) de renúncia,
por parte do Estado estrangeiro, à prerrogativa da intangibilidade
dos seus próprios bens (RTJ 167/761, Rel. Min. ILMAR GALVÃO
- ACOr 543-SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) ou (b) de existência,
em território brasileiro, de bens, que, embora pertencentes ao Estado
estrangeiro, sejam estranhos, quanto à sua destinação
ou utilização, às legações diplomáticas
ou representações consulares por ele mantidas em nosso País.
Cabe referir,
neste ponto, a propósito da questão específica da imunidade
de execução, o autorizado magistério de JOSÉ
FRANCISCO REZEK ("Direito Internacional Público", p. 176/177, item
n. 97, 7ª ed., 1998, Saraiva):
"A execução
forçada da eventual sentença condenatória, entretanto,
só é possível na medida em que o Estado estrangeiro tenha,
no âmbito espacial de nossa jurisdição, bens estranhos
à sua própria representação diplomática
ou consular - visto que estes se encontram protegidos contra a penhora ou
medida congênere pela inviolabilidade que lhes asseguram as Convenções
de Viena de 1961 e 1963, estas seguramente não derrogadas por qualquer
norma ulterior (...)." (grifei)
Essa, contudo,
não é a hipótese dos autos, pois, aqui, ainda se está
em face de processo de conhecimento, destinado à obtenção
de um provimento judicial condenatório definitivo, motivado pela existência
de contrato individual de trabalho, celebrado, com empregado brasileiro,
por repartição consular de Estado estrangeiro.
Vê-se,
portanto, como já ressaltado, que a questão a ser examinada,
na presente causa, diz respeito ao tema da imunidade de jurisdição.
Impõe-se
destacar, por isso mesmo, na linha dos precedentes firmados pelo Supremo
Tribunal Federal (RTJ 133/159 - RTJ 161/643-644), que deixará de prevalecer,
excepcionalmente, a prerrogativa institucional da imunidade de jurisdição
(não se discute, no caso, ainda, a questão pertinente à
imunidade de execução), sempre que o representante do Estado
estrangeiro, por atuar em matéria de ordem estritamente privada (matéria
laboral), intervier, como no caso, em domínio estranho àquele
em que usualmente se praticam, no plano das relações diplomáticas
e consulares, atos jure imperii.
Esse entendimento,
aplicável ao caso ora em análise - reclamação
trabalhista ajuizada por empregada brasileira, que, tendo sido contratada
como lavadeira pelo Consulado Geral do Japão, veio a ser dispensada
imotivadamente (fls. 37/40) - encontra fundamento, como já referido,
em precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal, já sob a égide
da vigente Constituição (RTJ 133/159, Rel. Min. SYDNEY SANCHES
- RTJ 161/643-644, Rel. Min. CELSO DE MELLO), apoiando-se, ainda, em autorizado
magistério doutrinário (PONTES DE MIRANDA, "Comentários
ao Código de Processo Civil", tomo II/263-265, 2ª ed., 1979, Forense;
CLÓVIS RAMALHETE, "Estado Estrangeiro Perante a Justiça Nacional",
in "Revista da Ordem dos Advogados do Brasil", nº 4/315-330, Setembro/Dezembro
1970; AMILCAR DE CASTRO, "Direito Internacional Privado", p. 540-541, item
n. 295, 4ª ed., 1987, Forense; CLÓVIS BEVILÁQUA, "Direito
Público Internacional", tomo I/79, 2ª ed., Freitas Bastos; OSCAR
TENÓRIO, "Direito Internacional Privado", vol. II/351, 11ª ed.,
Freitas Bastos; HILDEBRANDO ACCIOLY, "Tratado de Direito Internacional Público",
vol. I/227, item n. 330, 2ª ed., 1956, Rio de Janeiro; PEDRO LESSA,
"Do Poder Judiciário", p. 212, 1915, Livraria Francisco Alves; GUIDO
FERNANDO SILVA SOARES, "Das Imunidades de Jurisdição e de Execução",
p. 152-161, 1984, Forense; LUIZ CARLOS STURZENEGGER, "Imunidades de Jurisdição
e de Execução dos Estados - Proteção a Bens de
Bancos Centrais", RDA 174/18; OSIRIS ROCHA, "Reclamações Trabalhistas
contra Embaixadas: uma competência inegável e uma distinção
imprescindível", in LTr, vol. 37/602; JOSÉ FRANCISCO REZEK,
"Direito Internacional Público", p. 175/178, item n. 97, 7ª ed.,
1998, Saraiva; GERSON DE BRITTO MELLO BOSON, "Constitucionalização
do Direito Internacional", p. 248/249, 1996, Del Rey).
A natureza do
fato ensejador da presente reclamação trabalhista, cujo ajuizamento
motivou a prolação do acórdão ora impugnado,
torna incensurável a decisão emanada do E. Tribunal Superior
do Trabalho, por revelar-se efetivamente incabível, no caso em exame,
o reconhecimento da imunidade de jurisdição, pretendido pelo
Estado estrangeiro ora recorrente.
O fato irrecusável
é um só: privilégios diplomáticos não podem
ser invocados, em processos trabalhistas, para coonestar o enriquecimento
sem causa de Estados estrangeiros, em injusto detrimento de trabalhadores
residentes em território brasileiro, sob pena de essa prática
consagrar inaceitável desvio ético-jurídico, incompatível
com o princípio da boa-fé e com os grandes postulados do direito
internacional.
A parte recorrente
também sustenta que o acórdão ora em exame teria vulnerado
o art. 5º, incisos LIV e LV, e o art. 93, IX, todos da Constituição
da República (fls. 211 e ss.).
Quanto à
alegação de desrespeito aos postulados do due process of law
e da garantia de defesa, a orientação jurisprudencial firmada
por esta Suprema Corte, ao analisar esse aspecto do recurso ora em exame,
tem salientado, na perspectiva dos princípios do devido processo legal
e da amplitude de defesa, que a suposta ofensa ao texto constitucional, acaso
existente, apresentar-se-ia por via reflexa, eis que a sua constatação
reclamaria - para que se configurasse - a formulação de juízo
prévio de legalidade, fundado na vulneração e infringência
de dispositivos de ordem meramente legal. Não se tratando, pois, de
conflito direto e frontal com o texto da Constituição, como
exigido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 120/912,
Rel. Min. SYDNEY SANCHES - RTJ 132/455, Rel. Min. CELSO DE MELLO), torna-se
insuscetível de conhecimento o recurso extraordinário.
Demais disso,
cumpre ter presente - sempre na linha do entendimento jurisprudencial consagrado
pelo Supremo Tribunal Federal - que "O devido processo legal - CF, art. 5º,
LV - exerce-se de conformidade com a lei" (Ag 192.995-PE (AgRg), Rel. Min.
CARLOS VELLOSO - grifei), de tal modo que eventual desvio do ato decisório,
quando muito, poderá caracterizar situação tipificadora
de conflito de mera legalidade, a desautorizar o uso do apelo extremo.
Finalmente, no
tocante à alegada ausência de motivação da decisão
recorrida, é preciso ter presente, na linha da jurisprudência
firmada pelo Supremo Tribunal Federal (Ag 152.586-CE (AgRg), Rel. Min. CELSO
DE MELLO - Ag 266.146-RJ (AgRg), Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), que "O
que a
Constituição
exige, no art. 93, IX, é que a decisão judicial seja fundamentada.
Não, que a fundamentação seja correta, na solução
das questões de fato ou de direito da lide: declinadas no julgado as
premissas corretamente assentadas ou não, mas coerentes com o dispositivo
do acórdão, está satisfeita a exigência constitucional"
(RTJ 150/269, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE).
Sendo assim,
e tendo em consideração as razões expostas, não
conheço do presente recurso extraordinário.
Publique-se.
Brasília,
28 de fevereiro de 2002.
Ministro CELSO
DE MELLO
Relator