AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Nº 2.010-2
AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.010-2 (885)
PROCED. : DISTRITO FEDERAL
R E L ATO R : MIN. CELSO DE MELLO
REQTE. : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS
ADVOGADOS DO BRASIL
A D V. ( A / S ) : ROBERTO ANTÔNIO BUSATO
REQDO.(A/S) : PRESIDENDE DA REPÚBLICA
REQDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL
Publicada no DJ de 22.03.2004
DECISÃO: Trata-se de ação
direta, que, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
em face da Lei nº 9.783/99, busca, em essência, o reconhecimento
da inconstitucionalidade da contribuição para o custeio da
previdência social dos servidores públicos inativos e dos pensionistas,
além da declaração de invalidade jurídico-constitucional
das alíquotas progressivas referentes à contribuição
previdenciária devida tanto por inativos e pensionistas, quanto por
servidores em atividade.
O Plenário do Supremo Tribunal
Federal, ao apreciar o pedido de medida cautelar formulado pelo autor da
presente ação direta, deferiu, por unanimidade de votos, a
suspensão da eficácia das expressões “e inativo, e
dos pensionistas” e “do provento ou da pensão”, constantes do “caput”
do art. 1º da Lei nº 9.783/99, tendo suspendido, também
por votação unânime, o art. 3º e respectivo parágrafo,
desse mesmo diploma legislativo, sustando, ainda, por maioria de votos,
a eficácia do art. 2º e parágrafo único da já
mencionada Lei nº 9.783/99. Essa decisão plenária, relativamente
às questões postas em destaque, acha-se consubstanciada em
acórdão assim ementado (fls. 436 e 438):
“(...)
A
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NÃO ADMITE A INSTITUIÇÃO
DA CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL SOBRE INATIVOS E PENSIONISTAS
DA UNIÃO. –
A
Lei nº 9.783/99, ao dispor sobre a contribuição de seguridade
social relativamente a pensionistas e a servidores inativos da União,
regulou, indevidamente, matéria não autorizada pelo texto
da Carta Política, eis que, não obstante as substanciais modificações
introduzidas pela EC nº 20/98 no regime de previdência dos servidores
públicos, o Congresso Nacional absteve-se, conscientemente, no contexto
da reforma do modelo previdenciário, de fixar a necessária
matriz constitucional, cuja instituição se revelava indispensável
para legitimar, em bases válidas, a criação e a incidência
dessa exação tributária sobre o valor das aposentadorias
e das pensões. O regime de previdência de caráter contributivo,
a que se refere o art. 40, caput, da Constituição, na redação
dada pela EC nº 20/98, foi instituído, unicamente, em relação
'Aos servidores titulares de cargos efetivos...', inexistindo, desse modo,
qualquer possibilidade jurídico--constitucional de se atribuir, a
inativos e a pensionistas da União, a condição de contribuintes
da exação prevista na Lei nº 9.783/99. Interpretação
do art. 40, §§ 8º e 12, c/c o art. 195, II, da Constituição,
todos com a redação que lhes deu a EC nº 20/98.
.......................................................
CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE
SOCIAL - SERVIDORES EM ATIVIDADE - ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS:
A PROGRESSIVIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁ- RIA SUPÕE EXPRESSA
AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL. RELEVO JURÍDICO DA TESE.
- Relevo
jurídico da tese segundo a qual o legislador comum, fora das hipóteses
taxativamente indicadas no texto da Carta Política, não pode
valer-se da progressividade na definição das alíquotas
pertinentes à contribuição de seguridade social devida
por servidores públicos em atividade.
Tratando-se
de matéria sujeita a estrita previsão constitucional - CF,
art. 153, § 2º, I; art. 153, § 4º; art. 156, § 1º;
art. 182, § 4º, II; art. 195, § 9º (contribuição
social devida pelo empregador) - inexiste espaço de liberdade decisória
para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária,
instituir alíquotas progressivas em situações não
autorizadas pelo texto da Constituição. Inaplicabilidade, aos
servidores estatais, da norma inscrita no art. 195, § 9º, da Constituição,
introduzida pela EC nº 20/98.
A inovação
do quadro normativo resultante da promulgação da EC nº
20/98 - que introduziu, na Carta Política, a regra consubstanciada
no art. 195, § 9º (contribuição patronal) - parece
tornar insuscetível de invocação o precedente firmado
na ADI nº 790-DF (RTJ 147/921). (...)”
(RTJ 181/73-79,
Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Em momento posterior à instauração
deste processo de controle normativo abstrato e à ocorrência
do julgamento plenário do pedido de medida cautelar, sobreveio a
Lei nº 9.988/2000, que, em seu art. 7º, expressamente revogou
“o art. 2º da Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999”, circunstância
esta que ensejou o reconhe- cimento, pelo Supremo Tribunal Federal, e nos
termos de questão de ordem por mim suscitada, da prejudicialidade
parcial da presente ação direta (acórdão publicado
no DJU de 28/03/2003).
Verifico que
se registra, agora, a superveniência de um outro fato juridicamente
relevante, apto a provocar, na espécie, a prejudicialidade integral
desta ação direta.
Refiro-me
ao advento, em 19/12/2003, da EC nº 41/2003, que, ao dispor sobre a
reforma previdenciária, alterou , de maneira substancial, a norma
de parâmetro, que, invocada como paradigma de confronto, qualificava-se,
no contexto normativo então em exame, como fundamento central e subordinante
da situação de litigiosidade constitucional submetida à
apreciação desta Corte Suprema.
A superveniência da EC nº
41/2003, por representar ruptura de paradigma - bastante, por si mesma,
para gerar, no plano formal, significativas conseqüências de
ordem jurídica - impõe algumas reflexões prévias
em torno dos fins a que se destina o processo de fiscalização
normativa abstrata, tal como delineado em nosso sistema jurídico.
Como se sabe,
o controle normativo abstrato qualifica-se como instrumento de preservação
da integridade jurídica da ordem constitucional vigente.
A ação
direta, enquanto instrumento formal viabilizador do controle abstrato, traduz
um dos mecanismos mais expressivos de defesa objetiva da Constituição
e de preservação da ordem normativa nela consubstanciada.
A ação direta, por isso mesmo, representa meio de ativação
da jurisdição constitucional concentrada, que enseja, ao Supremo
Tribunal Federal, o desempenho de típica função política
ou de governo, no processo de verificação, em abstrato, da
compatibilidade vertical de normas estatais contestadas em face da Constituição
da República.
O controle concentrado de constitucionalidade,
por isso mesmo, transforma, o Supremo Tribunal Federal, em verdadeiro legislador
negativo (RTJ 126/48, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 153/765, Rel. Min. CELSO
DE MELLO - RTJ 178/22-24, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
É que
a decisão emanada desta Corte - ao declarar, “in abstracto”, a ilegitimidade
constitucional de lei ou ato normativo federal ou estadual - importa em
eliminação dos atos estatais eivados de inconstitucionalidade
(RTJ 146/461-462, Rel. Min. CELSO DE MELLO), os quais vêm a ser excluídos,
por efeito desse mesmo pronunciamento jurisdicional, do próprio sistema
de direito positivo ao qual se achavam, até então, formalmente
incorporados (RTJ 161/739-740, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Esse entendimento
- que tem suporte em autorizado magistério doutrinário (CELSO
RIBEIRO BASTOS, “Curso de Direito Constitucional”, p. 326, item n. 4, 11ª
ed., 1989, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 614,
item n. 10.9, 10ª ed., 2001, Atlas, v.g.), e que se reflete, por igual,
na orientação jurisprudencial firmada por esta Suprema Corte
(RT 631/227) - permite qualificar, o Supremo Tribunal Federal, como órgão
de defesa da Constituição, seja relativamente ao legislador,
seja, ainda, em face das demais instituições estatais, pois
esta Corte, ao agir nessa específica condição institucional,
desempenha o relevantíssimo papel de “órgão de garantia
da hierarquia normativa da ordem constitucional” (J. J. GOMES CANOTILHO,
“Direito Constitucional”, p. 809, 4ª ed., 1987, Almedina, Coimbra).
Torna-se necessário enfatizar,
no entanto, que a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal
- tratando-se de fiscalização abstrata de constitucionalidade
- apenas admite como objeto idôneo de controle concentrado as leis
e os atos normativos, que, emanados da União, dos Estados-membros
e do Distrito Federal, tenham sido editados sob a égide de texto
constitucional ainda vigente.
O controle
por via de ação, por isso mesmo, mostra-se indiferente a ordens
normativas inscritas em textos constitucionais já revogados , ou
que tenham sofrido, como no caso, alterações substanciais por
efeito de superveniente promulgação de emendas à Constituição.
É por
essa razão que o magistério jurisprudencial desta Suprema
Corte tem advertido que o controle concentrado de constitucionalidade reveste-se
de um só e único objetivo: o de julgar, em tese, a validade
de determinado ato estatal contestado em face do ordenamento constitucional,
desde que em regime de plena vigência, pois - conforme já enfatizado
pelo Supremo Tribunal Federal (RTJ 95/980 - RTJ 95/993 - RTJ 99/544 - RTJ
145/339) -, o julgamento da argüição de inconstitucionalidade,
quando deduzida “in abstracto”, não deve considerar, para efeito
do contraste que lhe é inerente, a existência de paradigma
revestido de valor meramente histórico. Vê-se, desse modo,
que, tratando-se de fiscalização normativa abstrata, a questão
pertinente à noção conceitual de parametricidade -
vale dizer, do atributo que permite outorgar, à cláusula constitucional,
a qualidade de paradigma de controle - desempenha papel de fundamental importância
na admissibilidade, ou não, da própria ação
direta, consoante já enfatizado pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal (RTJ 176/1019-1020, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Isso significa, portanto, que a idéia
de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade), por encerrar um conceito
de relação (JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”,
tomo II, p. 273/274, item n. 69, 2ª ed., Coimbra Editora Limitada) -
que supõe, por isso mesmo, o exame da compatibilidade vertical de
um ato, dotado de menor hierarquia, com aquele que se qualifica como fundamento
de sua existência, validade e eficácia - torna essencial, para
esse específico efeito, a identificação do parâmetro
de confronto , que se destina a possibilitar a verificação,
“in abstracto”, da legitimidade constitucional de certa regra de direito
positivo, a ser necessariamente cotejada em face da cláusula invocada
como referência paradigmática.
A busca do
paradigma de confronto, portanto, significa, em última análise,
a procura de um padrão de cotejo, que, ainda em regime de vigência
temporal, permita, ao intérprete, o exame da fidelidade hierárquico-normativa
de determinado ato estatal, contestado em face da Constituição.
Esse processo
de indagação, no entanto, impõe que se analisem dois
(2) elementos essenciais à compreensão da matéria ora
em exame. De um lado, põe-se em evidência o elemento conceitual,
que consiste na determinação da própria idéia
de Constituição e na definição das premissas
jurídicas, políticas e ideológicas que lhe dão
consistência. De outro, destaca-se o elemento temporal, cuja configuração
torna imprescindível constatar se o padrão de confronto, alegadamente
desrespeitado, ainda vige, pois, sem a sua concomitante existência,
descaracterizar-se-á o fator de contemporaneidade, necessário
à verificação desse requisito.
No que concerne ao primeiro desses
elementos (elemento conceitual), cabe ter presente que a construção
do significado de Constituição permite, na elaboração
desse conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de
índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que
consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo,
que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência
mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios
cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito
que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado.
Não
foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, certa vez, e
para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar
- distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo
jurídico - que a Constituição da República, muito
mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados,
há de ser também entendida em função do próprio
espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção
impregnada de evidente minimalismo conceitual (RTJ 71/289, 292 - RTJ 77/657).
É por
tal motivo que os tratadistas - consoante observa JORGE XIFRA HERAS (“Curso
de Derecho Constitucional”, p. 43) -, em vez de formularem um conceito único
de Constituição, costumam referir-se a uma pluralidade de acepções,
dando ensejo à elaboração teórica do conceito
de bloco de constitucionalidade, cujo significado - revestido de maior ou
de menor abrangência material - projeta-se , tal seja o sentido que
se lhe dê, para além da totalidade das regras constitucionais
meramente escritas e dos princípios contemplados, explicita ou implicitamente,
no corpo normativo da própria Constituição formal,
chegando, até mesmo, a compreender normas de caráter infraconstitucional,
desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia
dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando,
desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas,
a concretização da idéia de ordem constitucional global.
Sob tal perspectiva, que acolhe conceitos
múltiplos de Constituição, pluraliza-se a noção
mesma de constitucionalidade/inconstitucionalidade, em decorrência
de formulações teóricas, matizadas por visões
jurídicas e ideológicas distintas, que culminam por determinar
- quer elastecendo-as, quer restringindo-as - as próprias referências
paradigmáticas conformadoras do significado e do conteúdo
material inerentes à Carta Política.
Torna-se relevante
destacar, neste ponto, por tal razão, o magistério de J. J.
GOMES CANOTILHO (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”,
p. 811/812, item n. 1, 1998, Almedina), que bem expôs a necessidade
de proceder-se à determinação do parâmetro de
controle da constitucionalidade, consideradas as posições doutrinárias
que se digladiam em torno do tema:
“Todos os actos normativos devem
estar em conformidade com a Constituição (art. 3.º/3).
Significa isto que os actos legislativos e restantes actos normativos devem
estar subordinados, formal, procedimental e substancialmente, ao parâmetro
constitucional. Mas qual é o estalão normativo de acordo com
o qual se deve controlar a conformidade dos actos normativos? As respostas
a este problema oscilam fundamentalmente entre duas posições:
(1) o parâmetro constitucional equivale à constituição
escrita ou leis com valor constitucional formal, e daí que a conformidade
dos actos normativos só possa ser aferida, sob o ponto de vista da
sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, segundo as normas e princípios
escritos da constituição (ou de outras leis formalmente constitucionais);
(2) o parâmetro constitucional é a ordem constitucional global,
e, por isso, o juízo de legitimidade constitucional dos actos normativos
deve fazer-se não apenas segundo as normas e princípios escritos
das leis constitucionais, mas também tendo em conta princípios
não escritos integrantes da ordem constitucional global. Na perspectiva
(1), o parâmetro da constitucionalidade (=normas de referência,
bloco de constitucionalidade) reduz-se às normas e princípios
da constituição e das leis com valor constitucional; para
a posição (2), o parâmetro constitucional é mais
vasto do que as normas e princípios constantes das leis constitucionais
escritas, devendo alargar-se, pelo menos, aos princípios reclamados
pelo 'espírito' ou pelos 'valores' que informam a ordem constitucional
global.” (grifei)
Veja-se , pois, a importância
de compreender-se, com exatidão, o significado que emerge da noção
de bloco de constitucionalidade - tal como este é concebido pela
teoria constitucional (BERNARDO LEÔNCIO MOURA COELHO, “O Bloco de
Constitucionalidade
e a Proteção
à Criança”, in Revista de Informação Legislativa
nº 123/259-266, 263/264, 1994, Senado Federal; MIGUEL MONTORO PUERTO,
“Jurisdicción Constitucional y Procesos Constitucionales”, tomo I,
p. 193/195, 1991, Colex; FRANCISCO CAAMAÑO DOMÍNGUEZ/ANGEL
J. GÓMEZ MONTORO/ MANUEL MEDINA GUERRERO/JUAN LUIS REQUEJO PAGÉS,
“Jurisdicción y Procesos Constitucionales”, p. 33/35, item C, 1997,
Berdejo; IGNACIO DE OTTO, “Derecho Constitucional, Sistema de Fuentes”,
p. 94/95, § 25, 2ª ed./2ª reimpressão, 1991, Ariel;
LOUIS FAVOREU/FRANCISCO RUBIO LLORENTE, ”El bloque de la constitucionalidad”,
p. 95/109, itens ns. I e II, 1991, Civitas; JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA
BARACHO, “O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução”,
p. 77/81, 2000, Forense; DOMINIQUE TURPIN, “Contentieux Constitutionnel”,
p. 55/56, item n. 43, 1986, Presses Universitaires de France, v.g.) -, pois,
dessa percepção, resultará , em última análise,
a determinação do que venha a ser o paradigma de confronto,
cuja definição mostra-se essencial, em sede de controle de
constitucionalidade, à própria tutela da ordem constitucional.
E a razão de tal afirmação
justifica-se por si mesma, eis que a delimitação conceitual
do que representa o parâmetro de confronto é que determinará
a própria noção do que é constitucional ou inconstitucional,
considerada a eficácia subordinante dos elementos referenciais que
compõem o bloco de constitucionalidade. Não obstante essa
possibilidade de diferenciada abordagem conceitual, torna-se inequívoco
que, no Brasil, o tema da constitucionalidade ou inconstitucionalidade supõe,
no plano de sua concepção teórica, a existência
de um duplo vínculo: o primeiro, de ordem jurídica, referente
à compatibilidade vertical das normas inferiores em face do modelo
constitucional (que consagra o princípio da supremacia da Carta Política),
e o segundo, de caráter temporal, relativo à contemporaneidade
entre a Constituição e o momento de formação,
elaboração e edição dos atos revestidos de menor
grau de positividade jurídica.
Vê-se, pois, até mesmo
em função da própria jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (RTJ 169/763, Rel. Min. PAULO BROSSARD), que, na aferição,
em abstrato, da constitucionalidade de determinado ato normativo, assume
papel relevante o vínculo de ordem temporal, que supõe a existência
de uma relação de contemporaneidade entre padrões constitucionais
de confronto, ainda em regime de plena e atual vigência, e os atos
estatais hierarquicamente inferiores, questionados em face da Lei Fundamental.
Dessa relação de caráter
histórico-temporal, exsurge a identificação do parâmetro
de controle, referível a preceito constitucional, ainda em vigor,
sob cujo domínio normativo foram produzidos os atos objeto do processo
de fiscalização concentrada.
Isso significa, portanto, que, em
sede de controle abstrato, o juízo de inconstitucionalidade há
de considerar a situação de incongruência normativa
de determinado ato estatal, contestado em face da Carta Política
(vínculo de ordem jurídica), desde que o respectivo parâmetro
de aferição ainda mantenha atualidade de vigência (vínculo
de ordem temporal).
alteração
substancial em seu texto.
É por tal razão que,
em havendo a revogação superveniente (ou a modificação
substancial) da norma de confronto, não mais se justificará
a tramitação da ação direta, que, anteriormente
ajuizada, fundava- se na suposta violação do parâmetro
constitucional cujo texto veio a ser suprimido ou, como no caso, substancialmente
alterado. Bem por isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
desde o regime constitucional anterior, tem proclamado que tanto a superveniente
revogação global da Constituição da República
(RTJ 128/515 - RTJ 130/68 - RTJ 130/1002 - RTJ 135/515 - RTJ 141/786), quanto
a posterior derrogação (ou alteração substancial)
da norma constitucional (RTJ 168/436 - RTJ 169/834 - RTJ 169/920 - RTJ 171/114
- RTJ 172/54-55 - RTJ 179/419 - ADI 296/DF - ADI 595/ES - ADI 905/DF - ADI
906/PR - ADI 1.120/PA - ADI 1.137/RS - ADI 1.143/AP - ADI 1.300/AP - ADI
1.510/SC - ADI 1.885-QO/DF), por afetarem o paradigma de confronto invocado
no processo de controle concentrado de constitucionalidade, configuram hipóteses
caracterizadoras de prejudicialidade da ação direta, em virtude
da evidente perda de seu objeto:
“II - Controle direto de constitucionalidade:
prejuízo. Julga-se prejudicada, total ou parcialmente, a ação
direta de inconstitucionalidade no ponto em que, depois de seu ajuizamento,
emenda à Constituição haja abrogado ou derrogado norma
de Lei Fundamental que constituísse paradigma necessário à
verificação da procedência ou improcedência dela
ou de algum de seus fundamentos, respectivamente: orientação
de aplicar-se no caso, no tocante à alegação de inconstitucionalidade
material, dada a revogação primitiva do art. 39, § 1º,
CF 88, pela EC 19/98.” (RTJ 172/789-790, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
- grifei)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
INSTRUMENTO DE AFIRMAÇÃO DA SUPREMACIA DA ORDEM CONSTITUCIONAL.
O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO LEGISLADOR NEGATIVO. A NOÇÃO
DE CONSTITUCIONALIDADE/ INCONSTITUCIONALIDADE COMO CONCEITO DE RELAÇÃO.
A QUESTÃO PERTINENTE AO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE. POSIÇÕES
DOUTRINÁRIAS DIVERGENTES EM TORNO DO SEU CONTEÚDO. O SIGNIFICADO
DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FA- TOR DETERMINANTE DO CARÁTER
CONSTITUCIONAL, OU NÃO, DOS ATOS ESTATAIS. NECESSIDADE DA VIGÊNCIA
ATUAL , EM SEDE DE CONTROLE ABSTRATO, DO PARADIGMA CONSTITUCIONAL ALEGADAMENTE
VIOLADO. SUPERVE- NIENTE MODIFICAÇÃO/SUPRESSÃO DO PARÂMETRO
DE CONFRONTO. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO DIRETA. - A definição
do significado de bloco de constitucionalidade - independentemente da abrangência
material que se lhe reconheça - reveste-se de fundamental importância
no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata
qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se
como fator determinante do caráter constitucional, ou não,
dos atos estatais contestados em face da Carta Política.
- A superveniente alteração/supressão
das normas, valores e princípios que se subsumem à noção
conceitual de bloco de constitucionalidade, por importar em descaracterização
do parâmetro
constitucional
de confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato, situação
configuradora de prejudicialidade da ação direta, legitimando,
desse modo - ainda que mediante decisão monocrática do Relator
da causa (RTJ 139/67) - a extinção anômala do processo
de fiscalização concentrada de constitucionalidade. Doutrina.
Precedentes.” (ADI 595/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “Informativo/ STF”
nº 258/2002)
Cumpre ressaltar,
por necessário, que essa orientação jurisprudencial
reflete-se no próprio magistério da doutrina (CLÈ-
MERSON MERLIN CLÈVE, “A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade
no Direito Brasileiro”, p. 225, item n. 3.2.6, 2ª ed., 2000, RT; OSWALDO
LUIZ PALU, “Controle de Constitucionalidade - Conceitos, Sistemas e Efeitos”,
p. 219, item n. 9.9.17, 2ª ed., 2001, RT; GILMAR FERREIRA MENDES, “Jurisdição
Constitucional”, p. 176/177, 2ª ed., 1998, Saraiva), cuja percepção
do tema ora em exame põe em destaque, em casos como o destes autos,
que a superveniente alteração da norma constitucional revestida
de parametricidade importa na configuração de prejudicialidade
do processo de controle abstrato de constitucionalidade, eis que, como enfatizado,
o objeto da ação direta resume-se , em essência, à
fiscalização da ordem constitucional vigente.
Todas as considerações
que vêm de ser expostas justificamse em face da circunstância
de que, posteriormente à instauração deste processo
de controle normativo abstrato, sobreveio a Emenda Constitucional nº
41/2003, que suprimiu e a lterou , substancialmente, a cláusula de
parâmetro invocada para justificar o ajuizamento da presente ação
direta.
O argumento
de inconstitucionalidade exposto pelo autor da presente ação
direta apóia-se, fundamentalmente, na alegação de que
o diploma legislativo ora questionado teria transgredido a regra inscrita
no art. 40, “caput”, da Constituição Federal (na redação
anterior à promulgação da EC nº 41/2003), cujo
texto vedaria - tal como sustentado pelo autor e reconhecido, em sede de
medida cautelar, pelo Supremo Tribunal Federal - a instituição
(e cobrança) de contribuição previdenciária sobre
proventos e pensões.
Ocorre , no entanto, que a superveniência
da EC nº 41/2003 importou em substancial reformulação
da cláusula de parâmetro invocada pelo autor, eis que, em decorrência
da referida alteração constitucional, a Carta Política,
agora, ao assegurar “regime de previdência de caráter contributivo
e solidário”, determina que o custeio do novo sistema dar-se-á
“mediante contribuição do respectivo ente público,
dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas...” (CF, art. 40, “caput”,
na redação dada pela EC nº 41/2003).
O fato irrecusável,
no caso ora em exame, é um só: houve, na espécie, efetiva
mudança no paradigma de confronto, apta, por si só, a gerar
situação caracterizadora de total prejudicialidade da presente
ação direta.
Impõe-se
assinalar, finalmente, por extremamente relevante, que o Plenário
do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar, em recentíssimo julgamento
(10/03/2004), hipótese idêntica à ora versada nos presentes
autos - na qual também se discutia a constitucionalidade, ou não,
da instituição de contribuição previdenciária
sobre proventos e pensões -, reconheceu a prejudicialidade da mencionada
ação direta (ADI 2.197/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA),
ante a revogação da norma constitucional invocada como paradigma
de confronto, considerada a superveniência da EC nº 41/2003.
A inviabilidade da presente ação
direta, em decorrência da razão ora mencionada, impõe
uma observação final: no desempenho dos poderes processuais
de que dispõe, assiste, ao Ministro-Relator, competência plena
para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos
ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em conseqüência,
os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar.
Cumpre acentuar,
por oportuno, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inteira
validade constitucional da norma legal que inclui, na esfera de atribuições
do Relator, a competência para negar trânsito, em decisão
monocrática, a recursos, pedidos ou ações, quando incabíveis,
estranhos à competência desta Corte, intempestivos, sem objeto
ou que veiculem pretensão incompatível com a jurisprudência
predominante do Tribunal (RTJ 139/53 - RTJ 168/174-175).
Nem se alegue
que esse preceito legal implicaria transgressão ao princípio
da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará
preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular
ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito
do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem rei- teradamente proclamado
(RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.).
Cabe enfatizar, por necessário,
que esse entendimento jurisprudencial é também aplicável
aos processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI
563/DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD - ADI 593/GO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO
- ADI 2.060/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.207/AL, Rel. Min. CELSO
DE MELLO - ADI 2.215/PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), eis que, tal como
já assentou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento
positivo brasileiro “não subtrai, ao Relator da causa, o poder de
efetuar - enquanto responsável pela ordenação e direção
do processo (RISTF, art. 21, I) - o controle prévio dos requisitos
formais da fiscalização normativa abstrata, o que inclui,
dentre outras atribuições, o exame dos pressupostos processuais
e das condições da própria ação direta”
(RTJ 139/67, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Sendo assim,
tendo presentes as razões expostas, e considerando, ainda, a existência,
no caso, de precedente específico (ADI 2.197/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO
CORRÊA), firmado em hipótese idêntica à destes
autos, julgo extinto este processo de controle abstrato de constitucionalidade,
em virtude da perda superveniente de seu objeto.
Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se.
Brasília, 11 de março de 2004.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
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