ALGUMAS QUESTÕES
SOBRE A CONCESSÃO DA GRATUIDADE JUDICIÁRIA
Wilma Nogueira de Araújo Vaz da Silva
(Juíza
togada do TRT/2ª Região)
Sumário. I – Introdução. II – Natureza jurídica.
Gênero. Espécies. III – Simples declaração. IV
– Destinatários do benefício. V- Despesas abrangidas. VI –
Pedido a qualquer tempo. VII – Temas procedimentais. VIII – Isenção
e advogado particular. IX – Possibilidades de writ. X – Faculdade ou imperatividade.
XI – Conclusões.
I – Introdução
A compaixão pelos injustiçados
carentes tem sua própria história. A partir de incipientes
lampejos na Babilônia de Hamurabi – aquele rei que, por volta de 1.700
a.C., compilou um conjunto de normas para agradar aos deuses - o patrocínio
gratuito em juízo teve adesões ao passar por Grécia
e Roma, ganhou fórmula sob o signo de Constantino e adquiriu consistência
jurídica ao ser insculpida por Triboniano no código justinianeu,
compatibilizado com o Digesto também sob esse aspecto. Entre nós,
surgiu sob a égide das Ordenações Filipinas e mereceu,
no início da República, a criação de um serviço
público de assistência judiciária, até ser elevado
ao status de garantia constitucional em 1934. Ausente na Constituição
de 1937, retornou ao sistema jurídico nas subseqüentes (de 1946
e 1967), até consolidar-se em 1988 no inciso LXXIV do artigo
5º da vigente Carta Magna. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em 10.12.48, incluiu a assistência
judiciária no patrimônio ético da humanidade, como meio
eficaz de propiciar o acesso aos tribunais também àqueles que
não têm recursos para pagar pelo manejo do braço estatal
em defesa de seus direitos lesados.
Há quem considere redundante a expressão
“assistência judiciária gratuita”, ante a premissa de que a
gratuidade seria uma qualidade inerente à prestação
assistencial. Apontam-se as Leis 1060/50
(arts. 3º,
4º,
9º)
e 5584/70
(arts. 14,
17
e 18),
que se restringem à locução “assistência judiciária”.
No entanto, a semântica jurídica admite variada sinonímia
para o vocábulo assistência: auxílio, apoio, atenção
ou cuidado obrigacional (conjugal, familiar, filial), representação
(dos relativamente incapazes), legal (imposta por lei) ou processual (facultada
ao terceiro juridicamente interessado na lide). Ainda que a sintética
“assistência judiciária” compreenda, por si só, o favor
legal de agir em juízo sem pagar o preço que o Estado cobra
pelo exercício do direito de ação, a preocupação
em evitar o pleonasmo revela certo preciosismo de linguagem. Tanto é
que o próprio legislador enfatiza o sentido de gratuito justapondo,
àquela expressão, o complemento “aos necessitados”, na Lei
1060/50; e a explicitação remissiva “a que se refere
a Lei
1.060”, no art.
14, caput, da Lei
5584/70. O inciso LXXIV do artigo
5º da Constituição Federal faz o serviço
completo: “o Estado prestará assistência judiciária integral
e gratuita ...”.
O que seria um apêndice retórico, pois, tem
pelo menos uma virtude: a de não deixar dúvidas sobre a diferenciação
a ser feita quanto às formulações associadas à
assistência: marítima (socorro naval), litisconsorcial (conjunção
de litigantes), pública (fomento ou ajuda oficiais), pericial (auxílio
técnico à parte), ao crime (cumplicidade ou co-autoria), social
(atendimento sociológico ou político aos excluídos)
e assim vai. Como se vê, pode-se discorrer infinitamente sobre acidentes
de linguagem, enquanto milhares de necessitados arcam indevidamente – às
vezes por decisões teratológicas - com custos que sua condição
social, em particular, e a carga tributária, no geral, permitiriam
relevar por uma questão de justiça.
II – Natureza
jurídica. Gênero. Espécies
A assistência judiciária, integral e gratuita,
é uma das garantias institucionais do cidadão brasileiro. Sua
concessão, um dever do Estado, vem sendo prevista no ordenamento jurídico
infraconstitucional desde a Lei
1060/50, posteriormente complementada com a Lei
5584/70 e, a partir de 1988, assegurada no art.
5º, LXXIV, da Carta Magna. Apresenta natureza de direito público
subjetivo e constitui-se em gênero que compreende estas espécies:
assistência jurídica em sentido estrito, consistente
em atividade extraprocessual predominantemente pedagógica, informativa,
consultiva e orientadora, prestada por órgãos do Estado ou
conveniados; assistência judiciária, realizada em função
dos procedimentos processual ou administrativo, a expensas do Estado, em
que se destaca a figura do advogado dativo; e a gratuidade de justiça,
que compreende a dispensa de antecipação do pagamento das despesas
processuais (no sistema processual civil), a isenção dessas
despesas (pedida e deferível a qualquer tempo) e a dispensa provisória
(diferidas para pagamento a final).
As custas, em especial, têm natureza de taxa remuneratória
de serviços públicos, de modo que a discussão quanto
ao seu indeferimento não constitui matéria recursal própria
do processo judicial, tendo em vista que o trânsito em julgado ocorre
em sede administrativa, peculiaridade que, na lição de Hely
Lopes Meirelles, equivale apenas a uma preclusão de efeitos internos,
sem o alcance da coisa julgada judicial. E isso “porque o ato jurisdicional
da Administração não deixa de ser um simples ato administrativo
decisório, sem a força conclusiva do ato jurisdicional do Poder
Judiciário” (cf. Direito Administrativo Brasileiro. São
Paulo:Malheiros Editores, 2004, p.655). Esse é o motivo pelo qual
a lesão é passível de reparação mediante
mandado de segurança, independentemente da fase em que se encontre
a tramitação do processo judicial originário.
Nesse sentido, aliás, encontram-se redigidas as
ementas transcritas a seguir:
(Omissis) Custas processuais. Município. Isenção
de pagamento. Art.
790-A da CLT, acrescentado pela Lei
10.537/2002. As custas têm natureza de taxa remuneratória
de serviços públicos pelo exercício da atividade estatal,
que se inclui no rol de tributo. O fato gerador das custas é a condenação
por sentença. Desse modo, a Lei
nº 10.537/2002, de aplicação imediata, que acrescentou
o art.
790-A da CLT, isentando os Municípios do pagamento das custas,
pressupõe que o fato gerador alcançado pela isenção
já tenha ocorrido. Assim, tratando-se de relação continuativa,
ainda que tivesse ocorrido o trânsito em julgado da sentença,
existindo o fato gerador para a isenção das custas, exclui-se
o seu pagamento, não se tratando de retroatividade da Lei. Recurso
conhecido e provido. (TST – RR 796 – 4ª T. – Rel. Min. Barros Levenhagen
– DJU 23.04.2004) .
Agravo
– Ação cautelar incidental. Trânsito em julgado do processo
principal. Extinção da ação cautelar. Custas.
Ônus da parte sucumbente na ação principal. Concessão
do benefício da justiça gratuita. Orientações
Jurisprudenciais nºs. 269
e 331
da SBDI-1 do TST – Nas ações cautelares incidentais, advindo
o trânsito em julgado da ação principal, a ação
cautelar deve ser extinta, sem julgamento do mérito, por ausência
de interesse de agir. No tocante às custas processuais, a sucumbência
tem relação direta com o julgamento da ação principal,
isto é, se na ação principal o pedido do Autor da cautelar
for procedente, na ação cautelar o ônus das custas deve
ser suportado pelo Réu, sucumbente na ação principal.
In casu, a Reclamada ajuizou ação cautelar incidental, tendo
sido dado provimento ao seu recurso ordinário em ação
rescisória, com o posterior trânsito em julgado, de sorte que
a ação cautelar, em decisão monocrática, foi
extinta, sem julgamento do mérito, por ausência de interesse
de agir, sendo os Réus condenados a pagar as custas, não tendo
sido concedido o benefício da justiça gratuita, uma vez que
não houve solicitação nesse sentido, nem constava dos
autos da cautelar declaração de pobreza ou de percepção
de remuneração inferior a dois salários mínimos.
Ocorre que, no presente agravo regimental, o patrono da causa, sem poderes
especiais para tanto, firma declaração de insuficiência
econômica dos Agravantes, para fins de concessão do benefício
da justiça gratuita, o que viabiliza concessão do referido
benefício e a isenção das custas, nos termos das Orientações
Jurisprudenciais ns. 269
e 331
da SBDI-1, que prevêem, respectivamente, que o benefício da
justiça gratuita pode ser requerido em qualquer tempo ou grau de jurisdição
e que é desnecessária a outorga de poderes especiais ao patrono
da causa para firmar declaração de insuficiência econômica
para a concessão dos benefícios da justiça gratuita.
Agravo regimental provido. (TST – AGAC 71043 – SBDI 2 – Rel. Min. Ives Gandra
Martins Filho – DJU 16.04.2004).
III –
Simples declaração
Durante algum tempo, posicionei-me no sentido de que não
constituiria prova idônea de insuficiência econômica a
declaração de pobreza que não fosse prestada expressamente
sob as penas da lei e sem menção à responsabilidade
pelo teor declarado. Tratava-se de posicionamento que me parecia defensável
à época, mas que vim a reconsiderar por uma compreensão
melhor do inciso LXXIV do artigo
5º da Constituição Federal, à luz do qual
passei a entender como impositivo o reconhecimento de suficiência perante
simples declaração de impossibilidade financeira para arcar
com as despesas processuais sem comprometer o próprio sustento e a
sobrevivência familiar.
Há algum tempo já que
me alinho à corrente jurisprudencial defensora de que o citado dispositivo
assegura a prestação, pelo Estado, de assistência jurídica
aos que comprovarem insuficiência de recursos, bastando, para o cumprimento
da única exigência constitucional, seja apresentado requerimento
específico e a declaração de miserabilidade, ainda que
em formato mecânico e na petição inicial. A Lei
7115/83, aliás, já autorizava o reconhecimento da prova
documental de pobreza consistente em simples declaração firmada
pelo próprio interessado ou por procurador bastante.
O que se observa, na prática,
é que as exigências formais restritivas do direito, em geral,
limitam-se a invocar como fundamento dispositivos infraconstitucionais, privilegiando-os
de modo a subverter a hierarquia das leis e reduzir à ineficácia
o inciso LXXIV do art.
5º da Carta Magna.
IV – Destinatários
do benefício
Segundo a Lei
10.537/2002, que acresceu à CLT o artigo
790-A, não mais é cabível a condenação,
em custas processuais, da União, Estados, Distrito Federal, Municípios
e respectivas autarquias e fundações que não explorem
atividade econômica, assim como o Ministério Público
do Trabalho. A isenção prevista nesse dispositivo não
alcança as entidades fiscalizadoras do exercício profissional.
No mais, conquanto suscetível
de ser concedido a qualquer das partes litigantes - porque não há
vedação legal nesse sentido -, o benefício da gratuidade
é personalíssimo, ou seja, intransferível e somente
exercitável em nome próprio. Extingue-se com a morte do beneficiário,
cabendo aos sucessores, que a ele fizerem jus, requerê-lo no momento
oportuno.
Além da pessoa natural, há
uma controvertida tendência a se admitir a concessão do benefício
também à pessoa jurídica em determinadas hipóteses,
posto que o inciso LXXIV do artigo
5º da CF, a rigor, não faz acepção de classes.
Nesse caso, porém, não bastaria a mera declaração
sob as penas da lei. A requerente deve suplantar a presunção
de auto-suficiência, que labora contra sua condição,
promovendo efetiva demonstração da grave precariedade de recursos
(insolvência ou falência). Sob esse aspecto, apresentam-se como
possíveis beneficiários a firma individual, a micro e a pequena
empresas (em que o prejuízo empresarial adquire contornos pessoais)
e as entidades de filantropia, quando comprovadamente em crise econômico-financeira
não fraudulenta. Às sociedades despersonalizadas (como o condomínio
e o espólio), o benefício só poderia ser deferido se
a constatação da insuficiência de recursos resultar de
verificação do estado individual dos integrantes em cotejo
com a situação financeira da entidade.
Excluem-se, portanto, além das
entidades sindicais, também as sociedades empresariais com fins lucrativos
e cooperativas, nas quais o risco do empreendimento deve ser integralmente
assumido pelos associados, sócios e cooperados.
V- Despesas
abrangidas
Consoante o art.
3º da Lei 1060/50, a justiça gratuita abrange as despesas
de todos os atos processuais praticados pelo beneficiário, inclusive
as diligência dos oficiais de justiça, assim como as publicações
em jornal, a indenização às testemunhas e os honorários
de perito e de advogado do assistido. Entende-se como sendo meramente exemplificativo
o rol do citado dispositivo, tendo em vista a referência feita no subseqüente
art. 9º a todos os atos do processo, até decisão final.
O art.
35, do CPC, manda contar como custas as sanções impostas
às partes em conseqüência de má-fé. Assim,
o beneficiário da gratuidade também não precisa recolher
as multas que lhe forem impostas, ainda que estabelecidas como condição
para o processamento recursal.
O art.
3º da Lei 1060/50 não inclui no rol das despesas
processuais o depósito recursal, destinado a garantir a futura execução
do crédito trabalhista já reconhecido por sentença.
A exceção corre por conta da falência. Por inteligência
da Orientação
Jurisprudencial nº 31 da SDI-1 do TST, porém, não
se aplica às empresas em liquidação extrajudicial a
Súmula
nº 86, segundo a qual a falta de pagamento de custas ou de depósito
do valor da condenação não implica deserção
de recurso no tocante à massa falida.
VI – Pedido
a qualquer tempo
O estado de miserabilidade não admite preclusão.
A roda da fortuna gira ininterruptamente e distribui riquezas, poder e sucesso
a uns, ao mesmo tempo em que os retira de outros sem prévio aviso.
Daí porque o pedido de assistência judiciária ou de isenção
de despesas processuais pode ser requerido a qualquer tempo e em qualquer
grau de jurisdição, no processo de conhecimento ou, extraordinariamente,
na própria execução. Tanto a situação
econômica que dá motivo ao pedido como a decisão que
o concede são condicionadas pela cláusula rebus sic standibus,
vale dizer, prima pela precariedade, não gera preclusão pro
judicato. Ou, como já referido, não contêm matéria
recursal própria do processo judicial, tendo em vista que seu trânsito
em julgado ocorre em sede administrativa.
O direito à justiça gratuita
comporta eficácia para todos os atos processuais, em todas as instâncias,
nos termos do art.
9º da Lei 1.060/50, inclusive quanto às ações
incidentais na fase de conhecimento, assim como no processo de execução,
recursos e rescisórias.
Há presunção relativa
de veracidade no requerimento de pessoa física, que obviamente se
reporta à sua situação atual. O empregado recém-despedido
pode até ter mantido um contrato trabalhista que lhe propiciava remuneração
compensadora, mas a incerteza do estado de desemprego permite-lhe nivelar-se
ao desfavorecido, ante a ausência de perspectivas quanto ao futuro,
seu e da família, no contexto de uma dificuldade cada vez maior para
o retorno ao mercado de trabalho.
A possibilidade de requerer o benefício
da gratuidade em fase de execução, com efeitos ex tunc, está
amparada em prestigiosa jurisprudência (por exemplo, o julgado TRF/4ª
Região, AI 2000.04.01.044849-4/SC, Rel. Juíza Virginia Scheibe,
votação unânime, 5ª Turma, 21.08.00, DJ 13.09.00
p. 382). Dois são os fundamentos que afastam, nessa hipótese,
a objeção de coisa julgada: 1) as custas são taxas administrativas
e, portanto, não transitam em julgado; 2) o benefício
da justiça gratuita não se sujeita ao princípio da patrimonialidade
(art.
591 do CPC), porquanto repercute no âmbito dos direitos preservados
pela impenhorabilidade e previstos nos incisos IV e VII do art.
649 do CPC.
Nessa linha de raciocínio, a
postulação da gratuidade, justificada pelas circunstâncias
adversas da vida pessoal do requerente, não pode ser caracterizada
como atuação em fraude à lei ou desvirtuamento da finalidade
típica do benefício.
VII –
Temas procedimentais
Em juízo de cognição sumária,
o pedido do benefício pode ser decidido de plano, até porque
é requerível a qualquer tempo. O deferimento assenta-se na
presunção de veracidade contida na simples declaração
de insuficiência de recursos. Em contrapartida, o indeferimento se
faz igualmente possível, dada a limitação juris tantum
daquela presunção, mas, precisamente por isso, gera a necessidade
de prova da situação de miserabilidade. No entanto, a decisão
por verossimilhança só é possível para a concessão.
A negativa do pedido exige motivação fundada em prova nos autos,
sem se olvidar que o encargo de impugnar o estado de necessidade de pessoa
física é da parte impugnante, vedada a mera alegação,
em razão da mencionada presunção legal. A fundamentação,
ademais, ainda que sucinta, é imposição constitucional
em qualquer hipótese (artigo
93, IX, da CF).
Se a parte contrária impugna
o pedido de assistência jurídica e não demonstra a impugnação,
cabe considerar a hipótese de deslealdade processual. Não se
trata de ver apenas se houve ou não prejuízo resultante do
incidente, mas também o comprometimento do aparato judicial em matéria
na qual, a rigor, o interesse é preponderantemente administrativo.
O deferimento da gratuidade tem efeitos
ex tunc, porque o pedido sempre se presume originado em situação
preexistente, mas a revogação do benefício não
opera retroativamente, ou seja, não afeta a validade dos atos praticados
sem o recolhimento das custas processuais, tendo em vista que desconstitui
situação jurídica superveniente e benéfica à
parte mais fraca da relação processual.
O bom senso recomenda, por razões
práticas de celeridade e economia, que se a recusa do benefício
na instância originária gerar a reiteração do
pedido em recurso ordinário, seja privilegiado o direito de acesso
ao duplo grau de jurisdição e diferida a exigibilidade do recolhimento
das custas até que o tribunal ad quem se manifeste a respeito. Essa
providência simples é suficiente para evitar os transtornos
intermediários de um agravo de instrumento desnecessário, sendo
certo que o despacho de processamento do recurso, determinado com a pertinente
ressalva pela vara de origem, em nada compromete o juízo de admissibilidade
que, por uma via ou por outra, seria promovido no tribunal.
VIII –
Isenção e advogado particular
Compartilho do entendimento segundo o qual o patrocínio
por advogado particular, no processo trabalhista, não constitui óbice
à obtenção do benefício da gratuidade judiciária
por seu cliente necessitado. O inciso LXXIV do artigo
5º da Constituição Federal não estabelece
restrição discriminatória contra o exercício
da atividade do advogado, profissional qualificado, pelo artigo
133 da Constituição da República, como indispensável
à administração da justiça. Assim, o patrocínio
por advogado particular não constitui impedimento à obtenção
da assistência gratuita no juízo trabalhista, mas tão-somente
aos honorários advocatícios.
No artigo doutrinário “A assistência
judiciária e os honorários advocatícios dela decorrentes
na Justiça do Trabalho”, Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto
de Quadros Pessoa Cavalcante afirmam que o art.
14 da Lei 5584/70 não pode ser interpretado como se tivesse
excluído do processo trabalhista a Lei
1060/50. Das múltiplas razões que relacionam, destaco
as ponderações seguintes: o texto do art. 14 não diz
que na Justiça do Trabalho a assistência só será
prestada pelo sindicato, interpretação restritiva que estaria
em conflito com o progresso jurídico constatado desde Pontes de Miranda,
segundo o qual "a escolha de advogado pela parte marca a evolução
da justiça gratuita no Brasil" ("Comentários ao CPC/39",
art.
67); o argumento de que na Justiça do Trabalho o advogado
é desnecessário equivaleria, por exemplo, a dispensar a assistência
médica a pretexto de que o doente pode automedicar-se; o remédio,
no caso, estaria em se promover a coexistência de ambos os diplomas
legais porque, consoante Gaetano Franceschini: “A defesa dos pobres deve
ser igual à de seu adversário" (Il Patrocinio. Milano,
1903).
Em suma, o pedido de isenção
de custas pela concessão da justiça gratuita, indeferido por
estar, o autor, assistido por advogado particular – com fundamento na presunção
de suficiência econômica a despeito de declaração
em contrário -, conflita com a faculdade atribuída ao hipossuficiente,
no art. 1º. da Lei
nº. 7.115/83, de oferecer declaração documental
de pobreza mediante procurador bastante. Do fato de o trabalhador estar assistido
por advogado particular (que em geral cobra seus honorários ao final
da causa) não se extrai necessariamente que não esteja desempregado
ou se veja imune a dificuldades econômicas que o impeçam de
demandar sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família.
A penúria, embora socialmente estigmatizada, não representa
uma condenação do hipossuficiente à própria sorte
e tampouco um mecanismo de elitização da advocacia ou instrumento
discriminatório na distribuição de um benefício
social que a Constituição assegura indistintamente.
IX – Possibilidades
de writ.
No referente à matéria da concessão
do benefício da gratuidade judiciária, o sistema erigido pela
Constituição Federal de 1988 -- que obviamente se sobrepõe
às restrições anteriores estampadas na Lei
5584/70 -- autoriza que se interprete mais flexivelmente a vedação
contida no inciso II do art.
5º da Lei 1533/51, tendo em vista, particularmente, os aspectos
e ponderações que passo a expor.
A disposição contida
no inciso II do art.
5º da Lei 1533/1951, bem como o entendimento sedimentado na
Súmula
268 do E. STF, não apresentam caráter absoluto em sua
aplicabilidade, permitindo a opção pela via mandamental em
casos de demonstrada excepcionalidade, como se deduz dos tópicos extraídos
do repertório do Código de Processo Civil e legislação
processual em vigor (Theotonio Negrão e José Roberto F.
Gouvêa – São Paulo:Saraiva, 2004, p. 1089 e ss.), transcritos
a seguir:
“A última ratio do verbete 268
da Súmula da Jurisprudência do STF [“Não cabe mandado
de segurança contra decisão judicial com trânsito em
julgado”] é a não impugnabilidade da decisão judicial,
não cabendo distinguir entre coisa julgada formal e coisa julgada
material” (STF – Pleno: RTJ 129/816 e RDA 175/96).
Todavia:
“A jurisprudência deste STJ caminha no sentido de admitir a utilização
de mandado de segurança para desconstituir sentença prolatada
em processo que se desenvolve sem a citação da parte. A orientação,
amparada na assertiva de que a viciada sentença então proferida,
precisamente por não aperfeiçoada a angularidade da relação
processual, não transita em julgado, exclui, por derradeiro, a incidência
do enunciado n. 268
do excelso STF” (STJ-6ª Turma, RMS 8.807-SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido,
j. 3.12.01, negaram provimento, v.u., DJU 6.5.02, p. 312). No mesmo sentido:
STJ-4ª Turma, RMS 6.487-PB, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j.
24.9.96, deram provimento, v.u., DJU 4.11.96, p. 42.475).
Embora
o impetrante não haja também recorrido, em alguns casos o mandado
de segurança tem sido conhecido e concedido, em caráter excepcional
(JTJ 158/260), ou porque impetrado contra decisão que, embora recorrível,
era de natureza provisória (RJTJESP 64/268), ou porque a decisão
impugnada exigia pronto e eficaz reparo, sob pena de se tornar inócua
(RT 653/109, RTRF-3ª Região 5/212), ou porque, mais amplamente,
constituía decisão teratológica (RSTJ 83/92, STJ-RT
715/269) ou de flagrante ilegalidade (v., p. ex., RSTJ, 95/53, JTJ 173/279,
maioria).
Nessas
hipóteses, os tribunais, geralmente, não aplica, nem a Súmula
267
do STF, nem a Súmula 268 (RT 593/81, 593/84, 628/179, RJTJESP 127/242,
JTA 60/204, 61/138, 86/245, 89/356, 92/361, Bol. AASP 1.524/49, RBDP 51/158.
No mesmo sentido: STJ-RJTJERGS 140/27 (caso em que o juiz vedou o acesso
do impetrante à Justiça, mediante determinação
ao distribuidor forense; v. CPC
40, nota 9 (mandado de segurança contra decisão do
juiz que indefere a vista dos autos)”.
Na mesma direção, encontra-se a ementa seguinte:
“Quanto se lê, no art.
5º, II, da Lei nº 1.533 que ‘não se dará
mandado de segurança quando se tratar de despacho ou decisão
judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser
modificado por via de correição’, há que se entender
com a sua jurisprudência recente, que admite a medida quando o recurso
não for aparelhado com efeito suspensivo e da mora puder resultar
dano irreparável (Proc. RE S8.707-6´, 2ª T. rel. Min. Xavier
de Albuquerque, v.u., decisão de 2.12.77)”.
Nessa linha de raciocínio, ainda que a matéria
específica tratada no mandamus (concessão do benefício
da gratuidade judiciária em face do inciso LXXIV do artigo
5º
da Constituição Federal) foi ou esteja
sendo submetida a reexame em sede recursal, mediante apelos próprios,
o certo é que essa constatação não torna incabível
a utilização concomitante do remédio heróico,
ou seja, não se aplica a essa hipótese o disposto no
art.
5º, II, da Lei nº 1.533/51 ou a Súmula
268 do E. STF. A possibilidade de apreciação do objeto
da ação mandamental se deve a que a denunciada violação
de direito líquido e certo efetivamente já ocorreu, tendo-se
em conta a expressa previsão do citado artigo
5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, que
utiliza em seu comando o modo imperativo (“o Estado prestará assistência
judiciária e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”).
Assim, a ilegalidade pode e deve ser reparada, com respaldo no comando constitucional.
Apenas para maior compreensão
da matéria, afigura-se óbvio que a parte final da referida
Orientação
Jurisprudencial nº 269 (“...desde que, na fase recursal, seja
o requerimento formulado no prazo alusivo ao recurso”), conflita com a parte
inicial (“O benefício da justiça gratuita pode ser requerido
em qualquer tempo ou grau de jurisdição ...). Essa contradição,
porém, resolve-se pela preponderância da norma legal já
mencionada (§ 3º do art.
790 da CLT, na redação dada pela Lei
nº 10.537, de 27.08.2002), segundo a qual é facultado
aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais
do trabalho de qualquer instância conceder o benefício
da justiça gratuita a requerimento ou de ofício. Ora,
a faculdade da outorga de ofício constitui disposição
incompatível com exigências extralegais sine qua non
de requerimento pelo interessado ou de limitação temporal para
a oportunidade de fazê-lo.
Em síntese, perante o disposto
no artigo
5º, LXXIV, da Constituição Federal, não
se pode incluir a matéria referente à concessão do benefício
da gratuidade da assistência judiciária integral no rol
das pretensões fadadas à extinção do respectivo
writ em face da tese pela qual a duplicidade de providências para
a defesa do direito (impetração de mandado de segurança
e recursos próprios) conduz à configuração da
ausência de interesse processual diante da descaracterização
do binômio necessidade/adequação da tutela jurisdicional
postulada. O interesse processual se faz presente, no caso, pela excepcionalidade
advinda dos motivos já elencados: flagrante ilegalidade; decisão
teratológica; decisão de natureza provisória ou que
exigia pronta e eficaz reparação, sob pena de tornar-se inócua
(irreparabilidade do dano).
Além do mais, a reparação
da ilegalidade flagrante (como se configura na denegação do
benefício em tela, com explícita ofensa ao mencionado artigo
5º, LXXIV, da Constituição Federal) permanece
como direito inquestionável mesmo que tenha sido ratificada em decisões
proferidas nos recursos utilizados. Precisamente para isso é que o
ordenamento jurídico disponibiliza a ação rescisória
(nas hipóteses em que já ocorreu o trânsito em julgado);
e o mandado de segurança, apropriadamente denominado remédio
heróico, nas demais situações em que se faz necessária
a proteção de direito líquido e certo, não amparado
por habeas corpus, contra a violação (ou justo receio de sofrê-la)
caracterizada como ilegalidade ou abuso de poder e perpetrada por parte de
autoridade, como expressamente previsto no art. 1º da Lei
n. 1.533/1951.
X - Faculdade
ou imperatividade
O art.
790 da CLT (acrescentado pela Lei nº 10.737/2002), em seu §
3º, confere aos juízes a faculdade de conceder o benefício
da Justiça gratuita, de ofício ou a requerimento, para
aqueles que perceberem salário inferior ao dobro do mínimo
legal ou declararem que não estão em condições
de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio
ou de sua família.
Há evidente antinomia do dispositivo
infraconstitucional com a redação do inciso LXXIV do artigo
5º da CF, que consagra a gratuidade judiciária como um
dever do Estado - e não simples faculdade do magistrado. Desse confronto
não remanesce dúvida quanto à prevalência da norma
constitucional, que utiliza o modo imperativo do verbo: “O estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos”. Ante a manifesta inconstitucionalidade,
exclui-se a possibilidade exegética de se defender o poder discricionário
do juiz para conceder ou negar um benefício assinalado, na Lei Maior,
pelo imperativo categórico do dever.
Do texto do art.
790, § 3º, portanto, só é dado extrair, como
aptidão discricionária do juiz, a concessão ex officio
da gratuidade.
Nessa linha de entendimento destaca-se
o esclarecedor julgado:
Justiça
Gratuita. Direito da Parte e Faculdade do Juiz. Independentemente de
estar assistido pelo sindicato, a isenção de custas é
um direito a ser observado pelo juiz, se o interessado apresentou a declaração
prevista na Lei, submetendo-se às penalidades do Código Criminal.
A falsidade não pode ser presumida, por isso deve ser entendido que
a faculdade dada aos juízes pelo parágrafo 3º do art.
790 da CLT é apenas aparente, uma licença legislativa,
que deve ser interpretada sempre em favor do destinatário da Lei e
não como um poder discricionário do juiz, sujeito ao seu humor
de momento. (TRT 2ª R. – AI 00827 – (20040607970) – 9ª T. – Rel.
p/o Ac. Juiz Luiz Edgar Ferraz de Oliveira – DOESP 26.11.2004).
XI – Conclusões
a) A prestação
da assistência judiciária integral e gratuita é uma das
garantias do cidadão, sendo dever do Estado a sua concessão
a quem dela necessite. Está prevista no ordenamento jurídico
infraconstitucional, antes mesmo do advento da Lei
5584/70, através da Lei
1060/50, e finalmente consagrado no art.
5º, LXXIV, da Constituição Federal;
b) a assistência judiciária apresenta natureza de direito público
subjetivo e constitui-se em gênero que compreende estas espécies:
assistência jurídica em sentido estrito, consistente
em atividade extraprocessual; assistência judiciária,
realizada em função dos procedimentos processual ou administrativo;
e a gratuidade de justiça, que compreende a dispensa de antecipação,
a isenção e a dispensa provisória do pagamento
das despesas processuais;
c) é bastante, para o cumprimento da única exigência
constitucional, seja apresentado requerimento específico e a declaração
de miserabilidade, ainda que em formato mecânico. A Lei
7115/83 já autorizava o reconhecimento da prova documental
de pobreza consistente em simples declaração firmada pelo próprio
interessado ou por procurador bastante;
d) além da pessoa natural, a concessão do benefício
é admissível também à pessoa jurídica,
posto que o inciso LXXIV do artigo
5º da CF não faz acepção de classes. Nesse
caso, a requerente deve suplantar a presunção de auto-suficiência,
que labora contra sua condição, promovendo efetiva demonstração
da grave precariedade de recursos (insolvência ou falência).
Excluem-se, além das entidades sindicais, as sociedades empresariais
com fins lucrativos e cooperativas, nas quais o risco do empreendimento deve
ser integralmente assumido pelos associados, sócios e cooperados;
e) não se tratando de despesa processual ou de taxa, o depósito
recursal não pode ser objeto de isenção. A exceção,
por privilégio legal, refere-se às empresas em situação
falimentar. Segundo a OJ-31/SDI-1
do TST, no entanto, não se aplica às empresas em liquidação
extrajudicial a Súmula
nº 86 daquela Corte;
f) o estado de miserabilidade não admite preclusão. O pedido
de assistência judiciária ou de isenção de despesas
processuais pode ser requerido a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição,
no processo de conhecimento ou, extraordinariamente, na própria execução;
g) o bom senso recomenda que, se a recusa do benefício na instância
originária gerar a reiteração do pedido em recurso ordinário,
seja privilegiado o direito de acesso ao duplo grau de jurisdição
e diferida a exigibilidade do recolhimento das custas até que o tribunal
ad quem se manifeste a respeito. O despacho de processamento do recurso em
nada compromete o juízo de admissibilidade que, por uma via ou por
outra, será promovido no tribunal;
h) o dispositivo constitucional tampouco estabelece restrição
discriminatória contra o exercício da profissão de advogado,
qualificada no art.
133 da Carta Magna. Logo, o patrocínio por advogado particular
não constitui impedimento à obtenção da assistência
gratuita em Juízo, mas tão-somente aos honorários advocatícios;
i) a disposição contida no inciso II do art.
5º da Lei 1533/51, bem como o entendimento sedimentado na Súmula
268 do E. STF, não apresentam caráter absoluto em sua
aplicabilidade, permitindo a opção pela via mandamental em
casos de demonstrada excepcionalidade ou teratologia;
j) há evidente antinomia do art.
790, § 3º, da CLT com a redação do inciso
LXXIV do artigo
5º da CF, que consagra imperativamente a gratuidade judiciária
como um dever do Estado - e não como simples faculdade do magistrado.
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