CADÊ O PODER NORMATIVO?
Primeiras
ponderações sobre um aspecto restritivo na ampliação
de competência instituída pela Emenda Constitucional 45
Marcos Neves Fava*
I. Introdução. II. Poder normativo. III. Modificações
da Emenda
Constitucional 45. IV. Conclusões.
I. Introdução.
Mais de uma década de discussões e tramitação
legislativa foi necessária para a promulgação da emenda
constitucional 45, de oito de dezembro de 2004, que apresenta o resultado
da “Reforma do Judiciário”.
O ato não é isolado, porque sucede às reformas administrativa
e da previdência pública, inserindo-se no processo de reconfiguração
do Estado brasileiro. Bem assinalou ou ministro Nélson Jobim, na cerimônia
de promulgação da emenda, que não se trata da melhor
ou da pior reforma, mas daquela que foi possível ao povo brasileiro
desenvolver, dentro do democrático e dialético procedimento
legislativo. Cumpre, agora, aprender – e apreender – a substancial transformação
do Judiciário imposta pela emenda promulgada.
Dos multifacetados aspectos modificativos, reserva-se este breve artigo
a analisar um restritivo do perfil do Judiciário Trabalhista. Sem
dúvida alguma, a Justiça do Trabalho foi, na Reforma, o ramo
do Judiciário que mais modificações sofreu, com a ampliação
de sua competência. No que tange, no entanto, ao poder normativo, a
nova ordem constitucional impôs séria diminuição
– senão sua extinção! – ao instituto, considerado por
muitos como pedra angular do direito coletivo brasileiro.
Ressalve-se, desde logo, que apenas o tempo, através da construção
jurisprudencial, confirmará ou não estas que são apenas
primeiras impressões do texto recém publicado (31/12/2004).
II. Poder normativo.
Instituído pela Constituição de 1946, através
de seu artigo 123, no § 2º, dispunha: “§ 2º A lei especificará
os casos em que as decisões, nos dissídios coletivos,
poderão estabelecer normas e condições de trabalho”,
o poder normativo conceitua-se como o poder “constitucionalmente conferido
aos Tribunais Trabalhistas de dirimirem os conflitos coletivos de trabalho
mediante o estabelecimento de novas e mais benéficas condições
de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em
lei” 1 .
A palavra chave do conceito, retirada do Texto Constitucional – primeiro
o de 1946, repetido, depois, em 1967, 1969 e vigorando, muito semelhante,
em 1988, artigo
114, §
2º – é estabelecer. Ora, estabelecer é
“criar, instituir, fundar” 2 . Apenas daí é que se
extrai a possibilidade de atuação do Judiciário em função
típica do Legislativo, para “criar, instituir, fundar” ou “estabelecer”
normas abstratas e gerais, aplicáveis às categorias em dissídio
coletivo.
Não obstante a flexibilização da idéia motesquiana
– antes, aristotélica – da tripartição de poderes, certo
é que a doutrina, em razão do sistema de pesos e contrapesos,
exige clara separação entre as atividades típicas de
cada um dos componentes do Estado, excepcionando expressamente as hipóteses
em que um possa invadir a esfera da atuação do outro.
Exemplos disto encontram-se na lei delegada (artigo
68 da Constituição Federal) e na medida provisória
(artigo
62), quando o Executivo legisla, o julgamento do Presidente da República
pelo Senado (artigo
52, I), quando o Legislativo julga e a criação dos regimentos
internos dos tribunais (artigo
96, I), quando o Judiciário cria normas gerais e abstratas,
função do Legislativo.
Dalmo de Abreu Dallari, bem explica o sistema vigente
em quase todas as constituições modernas, destacando o caráter
excepcional da invasão de funções: “(...) os atos que
o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais
ou são especiais. Os gerais, que só podem ser praticados pelo
poder legislativo, constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas,
não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão
atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica tos gerais,
não atua concretamente na vida social, não tendo meios para
cometer abusos de poder nem para beneficiar, nem para prejudicar a uma pessoa
ou a um grupo particular. Só depois de emitida a norma geral é
que se abre a possibilidade d e atuação do poder executivo por
meio dos atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos para
agir, mas está igualmente impossibilitado e atuar discricionariamente,
porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados
pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge
a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada
um aa permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência
“ 3 .
Por ocasião da assembléia nacional constituinte, quando se
discutia a extinção do poder normativo, manifestou-se Evaristo
de Morais Filho, defendendo sua manutenção, esclarecendo
a necessidade inafastável de figuração, na Carta Maior,
do poder de criação de normas abstratas, sob pena de não
ser tornar possível sua aplicação ou instituição
pela lei ordinária: “A Justiça do Trabalho, porém, tem
peculiaridades que não devem ser esquecidas no texto constitucional,
precisamente por serem peculiaridades. Praticamente ela ficará ineficiente
e se tornaria inoperante para julgar os dissídios coletivos se não
se lhe desse a competência normativa. E esta a lei ordinária
não poderá dar, assim o entendo, se antes não o houver
feito de modo expresso a Constituição que estamos elaborando”
4 (sem grifo no original).
O poder de criação de normas, pelo Judiciário, exercido
através do chamado “poder normativo” é, portanto, excepcional
e necessita de previsão constitucional expressa.
O novo Texto Constitucional implementou algumas severas modificações
na solução judicial dos conflitos coletivos, a seguir enumeradas.
1. Quanto à iniciativa de ajuizamento. Exige a
nova ordem constitucional, que, frustradas a negociação e a
arbitragem, as partes conflitantes “de comum acordo”, poderão ajuizar
dissídio. A expressão é clara, não exigindo mais
do que interpretação gramatical. A partir de 31/12/2004, para
suscitar-se o dissídio coletivo, a petição inicial haverá
de ser subscrita por ambos os litigantes.
Não se argumente que tal providência cerceie o princípio
geral de acesso ao Judiciário, porque esta previsão constitucional,
contida no artigo
5º, inciso
XXXV, constitui-se garantia de acesso à jurisdição,
vale dizer, garantia de intervenção estatal para proteção
contra lesão ou ameaça de lesão. Ora, não existe,
no ordenamento, o direito ao acordo coletivo, isto é, ao resultado
positivo da negociação coletiva. Se uma das partes não
acorre à negociação, a resposta da contrária
não tem caráter jurisdicional, mas político, quase sempre
espocando na greve, quando a categoria econômica é responsável
pelo óbice.
Passa a funcionar, assim, o Judiciário Trabalhista, como um mecanismo
de solução arbitral, eleito por ambos os interessados, não
como antes ocorria, como o ponto final de qualquer negociação
frustrada, ou de qualquer movimento grevista.
O impasse negocial, no regime superado pela EC
45, sempre chegava às barras dos tribunais trabalhistas. A
greve merecia, em todas as situações, julgamento de sua abusividade
e concessão parcial ou integral das pretensões dos suscitantes.
A partir de agora, apenas a greve em serviços essenciais, e, ainda
nesta hipótese, quando houver possibilidade de prejuízo do
interesse público (artigo
114, §
3º da nova Carta).
2. Quanto à natureza do dissídio coletivo.
Conhece, a doutrina do direito coletivo brasileiro, duas espécies de
dissídios coletivos, classificadas como “de interesse” e “jurídicos”.
Os últimos correspondem aos dissídios de revisão e interpretação,
enquanto os primeiros destinam-se a “criar norma, pouco importando seja inédita
ou substitutiva de outra criada em dissídio anterior da mesma espécie”n
5. A restrição constitucional da emenda em comento limita
as proposições apenas a uma, a saber, o dissídio de interesse,
identificado, no Texto, como “dissídio coletivo de natureza econômica”.
Para reparação dos desvios, abusos e ilegalidades que restem
perpetrados no resultado de eventual negociação coletiva, resta
a ação anulatória de cláusula de convenção
ou acordo coletivo de trabalho, que tem fixada, salvo melhor juízo,
à competência para seu julgamento na primeira instância.
3. Quanto ao mérito da decisão. A modificação
mais revolucionária das impostas pela Emenda coincide com o esmorecimento
da “criatividade jurisdicional” na hipótese de manejo do poder normativo.
Com efeito, a expressão “estabelecer normas e condições”,
antes vigente no parágrafo segundo do artigo
114 da Constituição Federal, foi suprimida, afastando-se
de forma integral o poder abstrato e irrestrito de criação
de normas pela Justiça do Trabalho.
Antes da mudança da Norma Fundamental, o Supremo Tribunal Federal
já se pronunciara, mais de uma vez 6 , sobre a existência
de limites ao poder normativo da Justiça do Trabalho, reconhecidos
na lei e na reserva legal. Vale dizer, nas decisões da Excelsa Corte,
matérias já legisladas não comportavam, sob a antiga
ordem constitucional, poder de criação dos Tribunais Trabalhistas,
assim como as hipóteses em que o ordenamento reservava à lei
– por exemplo, no aviso prévio proporcional ao tempo de serviço
instituído pelo artigo
7º, inciso
XXI da C.F.
A partir da Reforma do Judiciário, à Justiça do Trabalho
restou a possibilidade de respeitar as “disposições “convencionadas
anteriormente”. Havendo convenção coletiva de trabalho pretérita
(ou acordo coletivo de trabalho) entre as mesmas partes, no dissídio
coletivo (só de interesse) instaurado (apenas por iniciativa conjunta,
ou, na greve, pelo Ministério Público do Trabalho), o Tribunal
pode confirmar tais condições de trabalho. Concretizando o exemplo:
em convenção coletiva de trabalho, não mais vigente,
haviam as partes estabelecido reconstituição do valor dos salários
pela variação do IPC, adicional de horas extraordinárias
de 60% e estabilidade por acidente de trabalho; em situação
posterior, suscitado o dissídio coletivo, poderá o Tribunal
confirmar estas cláusulas na sentença normativa. De maneira
nenhuma existirá fundamento constitucional para conceder aumento salarial,
adicional de produtividade, estabilidade por outro motivo ou maior do que
a fixada em negociação coletiva, ou adicional de horas extraordinárias
diferente de 50% (Constituição) ou de 60% (convenção
anterior).
(a) os dissídios
coletivos poderão ter conteúdo apenas econômico – retius,
de interesse – e não mais de interpretação ou revisão;
(b) dependerão da frustração da negociação
coletiva e da arbitragem;
(c) somente serão ajuizados por acordo entre as partes litigantes;
única exceção encontra-se na greve, em serviços
essenciais, com possibilidade de prejuízo ao interesse público,
quando o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizá-lo;
(d) a Justiça do Trabalho, ao decidi-los, não poderá
criar ou estabelecer normas não existentes no ordenamento positivo
ou nos acordos coletivos e convenções coletivas antes vigentes
entre as mesmas partes.
Restou, pois, reduzidíssimo o poder criativo dos Tribunais Trabalhistas,
alimentados, ao longo de décadas, por “amplíssima criatividade”
no estabelecimento de novas condições de trabalho, à
margem da lei positiva.
Desacompanhada de radical transformação do sistema sindical
pátrio, com maior avanço sensível da representatividade,
da organização e da vocação negocial das entidades
representativas de trabalhadores, a mudança constitucional representará
grave involução das aquisições obreiras das últimas
décadas.
Se as trocas implementadas bem alimentarão o sistema protetivo do
trabalho – e do trabalhador –, é resposta que só o tempo dará.
* Juiz do Trabalho Substituto
na Segunda Região, mestrando em Direito do Trabalho pela USP, professor
de processo do trabalho na Faculdade de Direito da Fundação
Armando Álvares Penteado – FAAP, e diretor de ensino e cultura da Associação
Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA – no biênio
2003-2005.
1 Martins Filho, Ives Gandra da Silva, Processo
Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São Paulo:
LTr, 1996, página 13.
2 Holanda Ferreira, Aurélio Buarque de,
Aurélio Século XXI – o Dicionário da Língua Portuguesa,
3ª edição, totalmente revista e ampliada, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, página 825, segundo sentido do vocábulo.
3 Dallari, Dalmo de Abreu, Elementos da Teoria
Geral do Estado, 16ª edição atualizada e ampliada,
São Paulo: Saraiva, 1991, páginas 184-185.
4 “A sentença Normativa” in Bernardes, Hugo
Gueiros (coordenador), Processo do Trabalho – Estudos em Memória
de Coqueijo Costa, São Paulo: LTR, 1989, página 184.
5 Pinto, José Augusto Rodrigues, Direito
Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São
Paulo: LTr, 2002, página 378.
6 Por exemplo, no
RE 197.911-9, 1ª Turma, Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI, proferido
em 24.09.1996.
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