Inovações
nas regras do contrato doméstico – primeiras linhas sobre a lei 11324
de 2006
Marcos Neves Fava1
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.
Ricardo Reis, 14-2-1933
No ocaso do mandato
do presidente-sindicalista, vem a lume a lei
11324, em 20 de julho de 2006, conversão da medida provisória
284/2006, com inovações normativas incidentes aos contratos
de trabalho doméstico. Têm estas linhas a finalidade de leitura
inicial das modificações havidas.
O diploma inicia por estabelecer incentivo fiscal em prol da formalização
dos vínculos de emprego domésticos2 , área
das relações trabalhistas em que, por variegados motivos,
a informalidade sobeja. Providencia a nova lei que os pagamentos feitos
pelo empregador (apenas a cota-patronal) doméstico à Previdência
Social em razão do contrato de trabalho que mantém formalmente
com seus empregados domésticos, sejam abatidos do imposto de renda
em declaração de ajuste anual.
Para tanto, fixa o limite de um salário mínimo, como base
da contribuição previdenciária dedutível, com
a inclusão da parcela referente ao décimo terceiro salário
(artigo 12 da lei 9250), com eficácia limitada ao exercício
de 2012. Duramente criticáveis sãos os critérios de
limitação da quantidade de empregados – que, à vista
do limite de um salário mínimo, a dedução não
pode ultrapassar a que se refere a um só contrato – e o teto da remuneração
a um salário mínimo. Com efeito, para melhor aproveitamento
do benefício fiscal, considerando-se por hipótese argumentativa
que o favor venha a colaborar com a formalização dos contratos
ilícitos em curso, a realidade da remuneração e a totalidade
dos dispêndios com a cota-patronal previdenciária mereciam
ser observadas.
A dedução opera-se na declaração anual de ajuste
e exige, para aproveitamento, a utilização do formulário
completo (artigo 12, II, lei 9250), observado o ano-calendário de
pagamento das contribuições, incluindo-se as que foram quitadas
a partir de janeiro de 2006 (artigo 8º, lei 11234).
O artigo 2º da lei em comento autoriza o recolhimento da contribuição
previdenciária do doméstico – e a referente cota do empregador
– relativa ao mês de novembro, até o dia 20 do mês de
dezembro, juntamente com a parcela da contribuição atinente
ao décimo terceiro salário, medida que faz coincidir o termo
final de pagamento com a data limite do recebimento, pelos assalariados,
da gratificação natalina (lei
4749/65, artigo 1º), com o claro intuito de facilitar ao contratante
trabalhador assalariado a regular quitação da obrigação.
A partir do quarto artigo, a norma passa a reformar o regime contratual
dos domésticos, vedando o desconto de parcelas salariais por entrega
de alimentação, vestuário, higiene ou moradia, exceto
se a habitação ocorrer em residência diversa ao local
da prestação dos serviços.
Em claro vernáculo: o empregador não pode, doravante, abater
do salário do trabalhador os títulos mencionados (alimentação,
vestuário, higiene ou moradia), quando havidos na residência
em que presta o trabalhador seus serviços. Quando ocorrer a hipótese
da exceção, o desconto dependerá, ainda, de consenso
entre as partes (parágrafo segundo do artigo
2º-A da lei
5859/72). Tal providência, assinale-se desde logo, não
guarda qualquer eficácia, à vista da inexpressiva possibilidade
de negociação dos contratos de trabalho por parte do empregado.
Na hipótese de habitação do trabalhador em outra casa,
o novel diploma proíbe a consideração dos valores abatidos
como salário in natura, ou parcela da remuneração,
o que tem o excelente significado de proibir a composição
salarial para fins de estabelecimento do valor da remuneração
do contratado. O piso do salário mínimo, garantia constitucional
atribuída aos domésticos (artigo
7º, IV
e parágrafo
único), deve ser apurado sem o aditamento das parcelas referidas,
portanto.
A nova lei reforma, ainda, o regime de férias anuais, ao estabelecer
o prazo comum de 30 dias, não mais de 20 dias úteis, confirmando
o acréscimo da remuneração das férias de um
terço (artigo
7º, XVII,
e parágrafo
único) já assegurados pela Constituição
da República. A medida está a corrigir equívoco de
evolução legislativa histórico, porque o regime de
20 dias úteis, antes fixado pela lei
5859, correspondeu, à época da promulgação
desta norma, ao prazo das férias comuns aos trabalhadores urbanos,
antes da modificação do artigo
130, I da C.L.T3 .
Como estava, o ordenamento jurídico laboral ostentava gravíssima
ofensa ao princípio da isonomia (por todas as normas, artigo
5º, caput da Constituição da República),
mantendo duas classes de trabalhadores, sem qualquer motivo plausível
para tanto. Diferença sem fundamento não é senão
discriminação. Isto já era reconhecido pela jurisprudência,
como demonstra a seguinte ementa de julgamento da 9º Turma do Regional
de São Paulo:
DOMÉSTICO - FÉRIAS DE 30 DIAS - As férias
do empregado doméstico são as mesmas do trabalhador urbano
- 30 dias com acréscimo de 1/3 -, por força da igualdade prevista
no art.
7º, parágrafo
único, da CF. O art.
3º da Lei
nº 5.859 tornou-se inconstitucional, não competindo
ao juiz fazer distinções onde a Lei Maior não distingue.
(TRT 2ª R. - RO 02885200006102009 - 9ª T. - Rel. Juiz Luiz Edgar
Ferraz de Oliveira - DJSP 29.07.2005 - p. 109).
No mesmo
sentido, a doutrina laboral já fixava parâmetros isonômicos
para atestar a inconstitucionalidade da fixação de período
inferior a 30 dias para os domésticos:
“Hoje, porém, a discussão passa a ser histórica,
pois a Constituição Federal, estendendo ao empregado doméstico
a garantia do direito a férias de todo trabalhador, afastou a vigência
da Lei nº 5.589/72 e de seu Regulamento, aos quais não recepcionou.
Está, então, o empregado doméstico, por força
da norma constitucional, hoje, sim, sob a disciplina do capítulo
da Consolidação, concernente a férias anuais remuneradas.”4
Antes mesmo
da novel legislação, já vigorava no País a Convenção
132 da OIT, ratificada pelo Brasil sem notícia de ressalva de qualquer
modalidade contratual, vigente desde 23.09.19995 . A ratificação
desacompanhada de ressalva e indicando que, no quesito “período de
gozo” o País já possuía norma mais benéfica,
o que, ante os limites da Constituição da OIT, retira a eficácia
da parcela da Norma Internacional, já implicava aplicação
genérica do período de trinta dias de gozo anuais, como sustentamos
alhures6 .
De lege lata, doravante, cobre-se com lápide
definitiva a controvérsia e as férias dos domésticos,
relativas aos períodos aquisitivos computáveis a partir da
publicação da lei (artigo
5º da lei
11324), serão contadas pelo período mínimo
de trinta dias.
O novo regulamento insere, ainda, o artigo
4ºA no corpo da lei
5859, fixando a proibição de demissão sem justa
causa da empregada doméstica grávida, desde a confirmação
da gravidez, até o quinto mês após o parto. Louvável
a correção de outra medida discriminatória da trabalhadora
doméstica, que ficou apartada da proteção geral do
artigo
10, II,
b
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Haverá, cedo, que assegure ser a medida inconstitucional, sob o
sofista argumento de que a norma genérica – ADCT, 10,
II,
b
– decorre do inciso primeiro do artigo sétimo da Constituição
da República, que não foi estendido aos domésticos.
Ou, ainda, que o mesmo primeiro inciso estabelece que as normas de garantias
contra a despedida sem justa causa devem vir por lei complementar.
Argumentos facilmente rejeitáveis, no entanto.
Isto porque a exclusão dos domésticos da proteção
do artigo
7º, I da Constituição da República não
impede a melhoria de sua condição de trabalho por meio de
lei ordinária. Regra geral de proteção de todos os
trabalhadores urbanos e rurais contra a despedida arbitrária é
matéria a ser veiculada por lei complementar, mas isto não
ofusca o caput do artigo sétimo, que garante serem,
os benefícios sociais da Constituição, piso das conquistas
sociais, sem prejuízo de “outros que visem à melhoria
de sua condição”.
Indiscutível que o caput do artigo
7º aplique-se aos domésticos, do que decorre, por leitura
singela, a possibilidade da melhoria de sua “condição social”,
por intermédio de qualquer modalidade de normas jurídicas.
Em ordem direta: a especificidade da lei complementar não é
oponível aos domésticos, expressamente excluídos do
campo de abrangência do inciso I do artigo
7º. Pensar diferentemente implicaria negar validade hoje ao
texto da nova lei e, quando vier a já tardia regulamentação
– por lei complementar – do inciso I do artigo
7º, excluir de novo os domésticos, porque não
abrangidos pelo referido tópico, ante os limites do parágrafo
único do mesmo artigo. Paradoxo cínico e insustentável.
Estão, pois, acobertadas pela garantia no emprego as empregadas
domésticas grávidas, em idênticas condições
das empregadas urbanas e rurais, desde a confirmação da gravidez,
até o quinto mês após o parto. Despedida arbitrária
no período haverá de ser compensada com o pagamento dos salários,
férias abonadas proporcionais e décimo terceiro salário
proporcional ao período faltante para observância da garantia.
As novidades do ordenamento reformado incluem a aplicação
integral da lei
605 de 1949 aos domésticos, porque o artigo 9º revoga
o artigo 5º, a, da lei do descanso remunerado7 .
Em termos práticos, o doméstico passa a ter, além
do direito ao repouso semanal remunerado (artigo
7º, XV
da Constituição da República e seu parágrafo
único), a prerrogativa de não trabalhar nos dias de
feriados civis ou religiosos, e, ainda, o de receber em dobro (artigo
6º, §3,
Decreto
27048/19498 ), se não compensado por folga, o
trabalho em dias de repouso remunerado ou feriados civis ou religiosos.
A par das regras de ampliação de direitos, houve por bem
o Presidente da República vetar três providências inovadoras
instituídas ao texto original da medida provisória proposta
de que resulta a lei em comento, negando o acesso dos domésticos
ao salário família, ao seguro desemprego e ao regime do Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço. Do ponto de vista da história
política do Presidente que efetivou os vetos, a medida é paradoxal.
Tem plena razão o veto ao salário-família, à
vista da limitação constitucional do artigo
195, §
5º 9, que impõe a indicação
da fonte de custeio do benefício. Quanto ao mais, o veto encontra
poucas explicações razoáveis, como se lê na mensagem
577 de 19 de julho de 2006.
Para negar acesso ao importantíssimo benefício do seguro
desemprego aos domésticos, argumentou o Chefe do Executivo que a
providência é “inadequada”, por não se exigir a comprovação
dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, quando
da concessão do benefício. Ora, a lei inovadora tornaria,
não fosse o veto ao artigo 4º, obrigatória a inserção
dos domésticos no sistema da lei
8036 e os requisitos da concessão passariam a representar
encargo à fiscalização, independendo de pressuposto
legal. Ao órgão gestor do seguro desemprego incumbe a supervisão
dos elementos de conformação para o recebimento das parcelas
e ao gestor do Fundo, a fiscalização pela regularidade dos
recolhimentos. Vazia, pois, a assertiva fundamental do veto.
Quanto à inserção dos domésticos no sistema
do Fundo, o que já vinha, de há muito, garantido pela lei
803610, e mantém-se como mera faculdade do empregador
(lei
10.208/2001), o argumento é o de que a providência
acabaria “por onerar de forma demasiada o vínculo de trabalho do
doméstico, contribuindo para a informalidade e o desemprego, maculando,
portanto, a pretensão constitucional de garantia do pleno emprego”.
A raiz do motivo já foi repetidamente utilizada por vozes neoliberais,
como meio de evitar a ampliação da garantias trabalhistas,
mas é falacioso. Décimo terceiro salário, descanso semanal
remunerado, licenças legais, garantias de emprego constituem, a partir
dessa vesga perspectiva, encargos à relação de trabalho.
Sua importância social, no entanto, supera o encarecimento do contrato
e melhor atende aos primados constitucionais de proteção à
dignidade humana e do valor social do trabalho. Encontrá-lo emitido
por alguém cuja história de vida confunda-se com a luta pelo
aprimoramento da condição social dos trabalhadores é
surpreendentemente decepcionante.
Os vetos não prejudicam o avanço da legislação,
que recupera, ainda que timidamente, grave dívida social com a classe
trabalhadora doméstica, atendendo ao apelo lançado pelo combativo
magistrado Grijalbo Fernandes Coutinho11 : “É preciso
mudar a dura realidade dos trabalhadores domésticos, os quais não
podem desfrutar das garantias dos demais empregados, como também
é necessário romper com os grilhões da "senzala moderna"
nas relações entre empregadores e empregados domésticos.
118 anos depois do fim da escravidão calamo-nos diante de discriminatório
ato encarado como resultado de obra do destino e tão normal como era
a exploração da mão-de-obra negra até o final
do século XIX”. Um pequeno passo foi dado. Que venham os demais.
1 Juiz do Trabalho
Substituto na Segunda Região (SP), mestre em direito do trabalho
pela USP, professor da Faculdade de Direito da Fundação Armando
Álvares Penteado – FAAP, e diretor de direitos e prerrogativas da
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
no biênio 2005-2007.
2
Registros há de que 60% da mão de obra ocupada no Brasil encontre-se
no mercado informal, sem qualquer proteção trabalhista ou
previdenciária, como se lê, de tantos, em TIRIBA, Lia. Educação
e mundos do trabalho: retratos da economia popular em Angra dos Reis. Universidade
Federal Fluminense - UFF, 2003 (CNPq/Faperj), p. 36-42.
3
Decreto-Lei nº 1.535, de 13.04.1977.
4
PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho.
4. ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 234.
5
Decreto
3.197 de 1999.
6
“Das novidades (ainda) da convenção 132 – férias” in
Revista da AMATRA II, volume 6, fevereiro de 2002, página 36.
7
Atenta à limitação do agora revogado artigo 5º
a, a jurisprudência restringia o pagamento em dobro do dia de repouso
trabalhado: “DOMÉSTICO - REPOUSO SEMANAL REMUNERADO - A norma constitucional
garante o repouso semanal remunerado ao empregado doméstico e a infringência
resulta no pagamento do dia trabalhado, de forma simples, em face da inaplicabilidade
da Lei
nº 605/49 para esses trabalhadores, por expressa determinação
do artigo 5º da mencionada Lei”. (TRT 15ª R. - RO 27.831/2000-1
- Rel. Juiz Antônio Miguel Pereira - DOESP 04.03.2002)
8
§ 3º. Nos serviços em que for permitido o trabalho nos
feriados civis e religiosos, a remuneração dos empregados
que trabalharem nesses dias será paga em dobro, salvo se a empresa
determinar outro dia de folga.
9
“nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá
ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio
total”
10
Artigo 15, parágrafo 3º.
11 “Casa Grande e Senzala”, artigo publicado
em www.adital.com.br, acesso em 20 de julho de 2006. |