“Numa manhã, ao despertar
de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco
inseto”.
Franz
Kafka, A metamorfose
Marcos Neves Fava2
1. Introdução. 2. Dissídio coletivo: poder
normativo. 3. Novo dissídio coletivo, emenda
45. 4. Greve. 5. O que está a caminho: reforma sindical. 6.
Conclusões.
1. Introdução.
Como um assustado Gregor Samsa, de Kafka, acordam assustados do sono da
Reforma do Judiciário os operadores do direito do trabalho, no que
tange ao funcionamento do dissídio coletivo, que sofreu graves alterações
que exigirão novos conceitos e nova compreensão do direito coletivo
do trabalho.
A cultura trabalhista brasileira escora-se e ampara-se no dissídio
coletivo, de maneira apaixonada e marcante. O homem comum, quando se refere
à época do ano em que, geralmente, os salários são
realinhados – a data-base – costuma dizer “o mês do meu dissídio”,
fato que ratifica a internação dessa modalidade de processo
coletivo no inconsciente comum.
Este artigo procura analisar os reflexos da Emenda
Constitucional 45 sobre o dissídio coletivo e apontar a congruência
entre tais modificações e o projeto de lei apresentado pelo
Executivo ao Legislativo, como resultado do Fórum Nacional do Trabalho,
para reordenação do direito sindical e das ações
coletivas.
2. Dissídio coletivo:
poder normativo.
A clássica divisão das atribuições do poder,
lançada por Aristóteles, em sua Política, e detalhada
por Montesquieu, n’o “Espírito das Leis”, impõe a visão
moderna da organização do Estado, separando-se as funções
estatais por sua atribuição a um dos três Poderes, que
funcionam intimamente ligados, mas como órgãos autônomos
e independentes. Registre-se que a idéia de “tripartição
dos poderes” merece crítica, porque o poder, em si, é uno e
indivisível; as funções, sim, dividem-se, segundo a vocação
de cada órgão, definindo-se como “um modo particular e caracterizado
de o Estado manifestar sua vontade”3 .
Explica Dalmo de Abreu Dallari o sistema de pesos e contrapesos em que se
funda tal divisão: “Segundo essa teoria, os atos que o Estado pratica
podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são
especiais. Os gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo,
constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas, não se
sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa
forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não
atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos
de poder nem para beneficiar, nem para prejudicar a uma pessoa ou a um grupo
particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre
a possibilidade de atuação do poder executivo por meio dos atos
especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está
igualmente impossibilitado de atuar discricionariamente, porque todos os
seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo.
E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação
fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer
nos limites de sua respectiva esfera de competência”4 .
Os Poderes da República são “independentes e harmônicos
entre si” (artigo
2º, Constituição Federal) e tal condição
é garantida por cláusula pétrea, consoante estabelece
o artigo
60, §
4º, III
da Carta Maior.
Ao Executivo incumbe a chefia de Estado, a chefia de governo e os atos de
administração, enquanto ao Legislativo atribui-se o dever de
legislar e fiscalizar – contábil e financeiramente – o Executivo, encarregando-se,
o Judiciário, da atividade de dizer o direito aplicável ao
caso concreto, para a solução das lides que lhe são apresentadas.
A Constituição Federal estatui, entretanto, para os mesmos
poderes, funções que não lhe são características,
como se dá com o julgamento do Presidente da República pelo
Senado Federal (artigo
52, I) ou quando o Legislativo dispõe sobre sua organização,
o provimento de cargos e a atribuição de remuneração
e férias (atividades típicas do Executivo); o Executivo legisla
através das medidas provisórias (artigo
62) ou das leis delegadas (artigo
68), cria e extingue cargos (artigo
84, VI)
e julga os litígios administrativos, no âmbito de sua atuação;
o Judiciário, por fim, organiza-se administrativamente, ao conceder
licenças, férias e estruturar seu quadro funcional (medidas
típicas do Executivo) e legisla, quando, por força do artigo
96, I, “a”, cria seus regimentos internos.
Daí considerar-se que cada um dos poderes da República realiza
funções típicas ou atípicas5 . Para
excepcioná-las, isto é, para que um dos poderes se entregue
à realização de tarefa típica de outro, necessária
expressa autorização da Constituição. Assinala
Walter Ceneviva6 , que a delegação de funções
não típicas constituiu solução inevitável,
vez que o funcionamento estanque de cada Poder, exercendo exclusivamente
suas atividades constitucionais ordinárias, não seria suficiente
a atender as demandas sociais. Por se tratar de desvio excepcional dos trilhos
da organização constitucional do Estado, a expressa atribuição,
referida, deve surgir em situações “muito próximas do
inevitável”7, evitando-se promiscuidade arriscada e comprometedora8
da independência dos poderes.
O Poder Normativo mostra, neste quadro, uma expressiva exceção
à forma de organização dos Poderes da República,
segundo o ordenamento vigente.
Embora a doutrina assinale sua instituição na Constituição
Federal de 19379, a primeira Carta Política10
que concebe a jurisdicionalização da Justiça do Trabalho,
a de 1946, foi a que trouxe, expressamente, a autorização de
deslocamento da competência legislativa para o Judiciário, de
forma específica, na solução de conflitos coletivos,
in verbis:
“Artigo 123 – Compete â Justiça do Trabalho conciliar
e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores,
e as demais controvérsias oriundas das relações do trabalho
regidas por legislação especial”.
‘’§
1º Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da
competência da Justiça Ordinária”.
Ҥ
2º A lei especificará os casos em que as decisões, nos
dissídios coletivos, poderão estabelecer normas e condições
de trabalho”11 .
A Constituição
Federal de 1967 manteve idêntica redação, no primeiro
parágrafo do artigo 134:
“§ 1º A lei especificará as hipóteses em
que as decisões nos dissídios coletivos poderão estabelecer
normas e condições de trabalho”.
Com a Emenda
Constitucional nº 1 de 1969, a matéria deslocou-se para o §
2º do artigo 142, com idêntica redação.
O Poder Normativo grassa livremente há décadas, não
encontrando limites, nem mesmo em matéria legislada, tornando-se comum
encontrarem-se cláusulas de sentenças normativas que reproduzem
os ditames legais.
A autorização constitucional de transferência do poder
legiferante para o Judiciário – em matéria laboral e diante
da existência de conflito coletivo – vem fundada na expressão
“estabelecendo normas”. Estabelecer, ensina-o Aurélio, é “criar,
instituir, fundar”12 . O cerne da autorização constitucional
inculca-se no verbo estabelecer13 , que se traduz
pelo poder criativo do instituto em análise.
Define-se o poder normativo como aquele “constitucionalmente conferido aos
Tribunais Trabalhistas de dirimirem os conflitos coletivos de trabalho mediante
o estabelecimento de novas e mais benéficas condições
de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em
lei”14 . Ou, como leciona José Augusto Rodrigues Pinto15
: “é a competência determinada a órgão do poder
judiciário para, em processo no qual são discutidos interesses
gerais e abstratos, criar norma jurídica destinada a submeter à
sua autoridade as relações jurídicas de interesse individual
concreto na área da matéria legislada”.
A sentença normativa é resultado do caráter judicial
da estruturação do Poder Normativo, segundo Octavio Bueno
Magano16, e constitui, como sintetiza Maurício
Godinho Delgado17 “ato-regra (Duguit), comando
abstrato (Carnelutti), constituindo-se em ato judicial (aspecto formal) criador
de regras gerais, impessoais, obrigatórias e abstratas (aspecto material).
É lei em sentido material, embora se preserve como ato judicial, do
ponto de vista de sua produção e exteriorização”
Para Pedro Vidal Neto18, o referido poder constrói
forma de integração da norma trabalhista, ampliando a atividade
integradora de intérprete que exerce o Juiz nos dissídios coletivos,
para que a equidade funcione como um meio de preenchimento de lacunas, nos
dissídios coletivos. Nestes termos: “A atividade judiciária
não se reduz à subsunção lógica e silogística,
mas envolve a criação de normas jurídicas, que se desenvolve
na aplicação e na interpretação do direito. Resumidamente,
pode-se lembrar que o juiz não se exime de julgar, alegando a inexistência
de norma jurídica adequada ao caso. Cabe-lhe descobrir a regra apropriada,
mediante mecanismos de integração do direito, i.e., recorrendo
à analogia, aos princípios gerais do direito e à eqüidade.
Desse modo, são supridas as lacunas do direito”.
Esta peculiar forma de solução dos conflitos coletivos adotada
pelo Brasil encontra-se, de há muito, no cerne de acirrado debate sobre
a necessidade de sua manutenção. Relembra José Carlos
Arouca19 que, na história, o poder normativo
antecipou o conteúdo das convenções e acordos coletivos:
“As decisões da Justiça do Trabalho determinavam o conteúdo
das poucas convenções, que CID JOSÉ SITRÂNGULO
desvendou através do tempo: No período de 1947 a 1952 eram
apenas 5 cláusulas, três altamente restritivas: 2 a) aumento
salarial (vez ou outra por faixas salariais); b) compensação
dos aumentos concedidos na vigência do dissídio anterior; c)
exclusão dos abonos; d) exclusão dos repousos remunerados;
e) condicionamento do reajuste à assiduidade. Adiante, no período
de 1953 a 1964, o avanço foi insignificante: a) reajustamento salarial;
b) aplicação proporcional para os empregados admitidos após
a data-base; c) piso salarial; d) teto de aumento; e) compensação
dos aumentos anteriores à data-base; f) condicionamento do reajuste
à capacidade econômica da empresa, ou sua capacidade financeira,
ou ainda a sua capacidade econômico-financeira. Assim, se para os trabalhadores
o piso foi bom, ruim foram as demais cláusulas. No período
de 1965 a 1976, até onde chegou o levantamento, os acréscimos
foram: a) fornecimento de comprovantes de pagamento; b) fornecimento gratuito
de uniformes, quando necessários para a prestação do
trabalho; c) estabilidade provisória para a gestante até dois
meses após a licença compulsória; d) salário do
substituto igual ao do empregado despedido sem justa causa; e) contribuição
em favor do sindicato para a realização de obras sociais”.
Resta bem demonstrada a importância do instituto, ao garantir o avanço
das normas protetivas do trabalhador, sem a fiança legislativa, através
das decisões dos Tribunais do Trabalho, com função criadora,
dita normativa. Justificam, alguns, sua mantença, sob os argumentos
de que (a) o modelo alimenta uma valiosa fonte formal de normas jurídicas
trabalhistas e (b) supre a falta ou a insuficiência de organização
de algumas categorias para reivindicação de seus interesses.
Na trincheira oposta, por “traduzir fórmula de intervenção
do Estado na gestão coletiva dos conflitos trabalhistas”20,
o poder normativo tem sido duramente criticado. José Augusto Rodrigues
Pinto, embora reconhecendo que, no plano individual, o apelo social da
manutenção do poder legiferante dos Tribunais do Trabalho possa
tutelar validamente interesses não protegidos por outras vias, assevera
que “numa visão de conjunto, é nocivo para o amadurecimento
do sindicalismo”21.
O polêmico instituto foi inserido, conclua-se, repetindo, no sistema
constitucional pátrio de 1988, pela expressão “estabelecer
normas e condições”.
3. O novo dissídio
coletivo: Emenda Constitucional 45.
Comparem-se, inicialmente, os textos vigente e o anterior, quanto à
matéria em análise:
“Recusando-se qualquer das partes à negociação
coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum
acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo
a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições
mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas
anteriormente”.
Que se
compara com a anterior, vazada assim:
“Recusando-se
qualquer das partes à negociação ou à arbitragem,
é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo,
podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições,
respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas
de proteção ao trabalho”.
Do texto
extraem-se diversas e pontuais diferenças, que dão novo caráter
ao instituto, como se passa a analisar.
De primeiro, merece destaque a permanência do exaurimento da tentativa
negocial, como condição de ajuizamento do dissídio coletivo.
Ambos os textos constitucionais enunciam: “recusando-se qualquer das partes
à negociação”. O Tribunal Superior do Trabalho, sob a
antiga ordem constitucional, já havia firmado posição
clara no sentido de constituir a prévia negociação exaurida
em condição do ajuizamento da medida coletiva, o que se exemplifica
com esta decisão relatada pelo Ministro Ronaldo Leal:
DISSÍDIO COLETIVO – AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS DE CONSTITUIÇÃO
E DESENVOLVIMENTO VÁLIDO E REGULAR DO PROCESSO – A partir da promulgação
da Constituição Federal de 1988, o esgotamento da via negocial
passou a ser elemento indispensável ao ajuizamento da ação
coletiva (art.
114, §
2º). Pressupondo a instauração de instância
o malogro das tentativas de composição amigável, deve
o suscitante, primeiramente, comprovar nos autos que as condições
de trabalho, objeto deste feito, foram aprovadas pela categoria de forma legal
e que se encontra devidamente autorizado para negociá-las junto à
classe patronal com a finalidade de firmar acordo ou convenção
coletiva. Em segundo lugar, é necessário também que o
suscitante demonstre, de forma cabal, haver tentado chegar, verdadeiramente,
a uma composição amigável antes de buscar o pronunciamento
desta justiça especializada. O sindicato profissional não atentou
para as disposições contidas no seu estatuto, quando da convocação
da categoria para a assembléia geral, e no art.
612 da CLT, no pertinente ao “quorum” legal necessário para
a validade daquele evento, bem como não demonstrou o exaurimento das
tentativas de negociação prévias, exigência constitucional
para a instauração da instância coletiva. Inobservadas,
pelo suscitante, formalidades imprescindíveis ao ajuizamento do dissídio
coletivo, o processo é extinto sem apreciação do mérito,
na forma do artigo
267, IV,
do Código de Processo Civil.22
O acórdão referencia “formalidades imprescindíveis
ao ajuizamento do dissídio”, incluindo, entre as tais, a necessidade
de as partes demonstrarem “haver tentado chegar, verdadeiramente, a uma composição
amigável antes de buscar o pronunciamento desta justiça especializada”.
A autocomposição forma a maneira natural de solução
dos dissídios coletivos, porque solve a lide – ou evita que ela ecloda
– sem intervenção Estatal. Apenas afastada de forma peremptória
a saída consensual, as partes podiam, já na vigência do
Texto de 1988, acorrer ao Judiciário.
Erigiu-se,
então, interpretação – incorreta, antecipe-se – de existir
um direito ao resultado positivo da negociação, noutras palavras,
o direito das partes, obrigatoriamente, transigirem. Daí imaginar-se
que o direito de acesso ao Judiciário (direito de ação),
no plano do dissídio coletivo, corresponderia a um direito material
de obter o resultado afirmativo da negociação, ou o acordo.
A nova Constituição da República estabelece o mesmo
pré-requisito, firmando posição em favor da valorização
da negociação livre entre as partes, na busca de uma sociedade
mais justa e do aprimoramento das relações trabalhistas, com
o conseqüente aparelhamento do rol de normas, já não pequeno,
de proteção ao trabalho.
A seguir, as normas são, ainda, unívocas, ao endereçarem
as partes à arbitragem, colocada como alternativa ao resultado negativo
da negociação coletiva.
E param por aí as identidades.
A primeira grave alteração diz respeito à iniciativa
ao dissídio coletivo. Restringiu, a Carta Política vigente,
em muito, pela EC
45, o acesso a essa via de solução dos conflitos coletivos,
ao estabelecer que, frustradas a negociação e a arbitragem,
as partes só podem acorrer a Juízo por “mútuo acordo”.
Paradoxo aparente. Se não transigiram, se não concordaram em
caminhar para a arbitragem, poderão socorrer-se, por iniciativa recíproca,
ao Judiciário?
Paradoxo apenas aparente.
Com efeito, para tachar de paradoxal a exigência do texto, preciso
seria conceber a existência de um direito tutelável, que seria
o direito ao acordo, ou o direito ao resultado positivo da negociação.
Não atingido, prevaleceria, em face da garantia constitucional de acesso
à jurisdição, a intervenção judicial, pelas
mãos do Poder Normativo. Não existe, no entanto, no sistema
pátrio, qualquer disposição que assegure aos interessados,
o fim útil da negociação. O direito limita-se ao reconhecimento
da validade, tão ampla quanto as demais normas heterogêneas do
direito do trabalho, do resultado negocial a que, espontaneamente, cheguem
as partes, na forma do artigo
7º, XXVI.
Garantia de que todo processo negocial culminará em acordo não
prevalece no sistema jurídico brasileiro.
Bom é notar que a OIT, por seu comitê de liberdades sindicais,
já se manifestou sobre a matéria, referindo-se, por acaso, a
um problema egresso do Brasil. Na greve dos petroleiros, eclodida com violência
e persistência nos anos 90, o agente econômico, a Petrobrás,
empregadora única dos trabalhadores dessa categoria profissional, suscitou
dissídio coletivo, buscando solver o conflito, há muito deflagrado
e que lhe trazia notórios prejuízos, com a paralisação
praticamente total das unidades refinadoras. O Tribunal Superior do Trabalho
foi acionado, por meio de dissídio coletivo, e prolatou decisão,
a que não deram cumprimento os trabalhadores, fato que ensejou a aplicação
de multas elevadíssimas23. A Central Única dos Trabalhadores,
CUT, formalizou reclamação perante o Comitê de Liberdades
Sindicais e obteve manifestação daquele importante órgão
da Organização Internacional do Trabalho, no sentido de se
constituir atentado à liberdade sindical – conduta anti-sindical –
a possibilidade de um dos atores do embate coletivo requisitar interferência
do Poder Judiciário.
As diferenças não
cessam, no entanto, por aí.
A novel Constituição da República estatui, ainda, que,
concordando ambas as partes, a única via de acesso ao Poder Judiciário
será a do dissídio econômico, eliminando, por exclusão
intencional, as demais formas de dissídios coletivos, antes presentes
no ordenamento pátrio, como o de interpretação e o de
revisão (artigo
873, C.L.T.). Enfaticamente, limitou o constituinte derivado reformador
as hipóteses de acesso ao dissídio coletivo apenas aos de interesse,
ou, pela letra da lei, os econômicos.
Na decisão do Tribunal, também modificação relevante
encontra-se estampada no texto. Antes, podia a Corte “estabelecer” normas,
vale dizer, criar novas regras, não previstas em lei, para satisfação
do litígio. Hodiernamente, à luz da nova ordem constitucional,
não há qualquer autorização para tanto.
Os limites do poder normativo oscilaram ao longo dos tempos e sob as diferentes
perspectivas dos Tribunais Superiores. Relatada por Coqueijo Costa,
antiga decisão do Tribunal Superior do Trabalho procura estabelecer,
com analogia geográfica, tais limites: "Poder normativo. 1. O poder
normativo atribuído à Justiça do Trabalho limita-se,
ao norte, pela Constituição Federal; ao sul, pela lei, a qual
não pode contrariar; a leste, pela eqüidade e o bom senso; e a
oeste, pela regra consolidada no artigo setecentos e sessenta e seis, conforme
a qual nos dissídios coletivos serão estipuladas condições
que assegurem justo salário aos trabalhadores, mas 'permitam também
justa retribuição às empresas interessadas' 24."
Já o Supremo Tribunal Federal, em mais de uma decisão,
restringiu a operação do poder normativo, concluindo que as
cláusulas criadas nas sentenças normativas "a despeito de configurarem
fonte de direito objetivo, revestem o caráter de regras subsidiárias,
somente suscetíveis de operar no vazio legislativo, e sujeitas à
supremacia da lei formal (art.
114, §
2º da CF)25”. Segundo o Pretório Excelso,
a criação de normas por meio do deslocamento da competência
legislativa ocorreria apenas no vazio da lei e, ainda, quando não
houvesse “reserva legal”. Vale dizer: não se poderia inovar por dissídio
coletivo primário qualquer dos aspectos do direito do trabalho já
regulados pela lei ou pela Constituição da República,
assim como não se poderia invadir a competência do Legislativo,
quando o ordenamento apontasse para a lei como fonte formal de determinado
direito. Exemplo da primeira hipótese é o valor da hora extraordinária,
já estabelecido em 50% pela Constituição Federal; exemplo
da última é o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço
“nos termos da lei”, previsto no inciso
XXI do artigo
7º da Carta Política.
Ao extirpar da letra constitucional a expressão “estabelecendo normas”,
o constituinte derivado tolheu os Tribunais Trabalhistas do exercício
criativo de regras gerais e de aplicação irrestrita. Destaque-se,
ainda, que, sob a égide da Constituição da República
de 1988, a decisão haveria apenas de respeitar as garantias mínimas
estabelecidas pela lei e pelas convenções, mas o texto vigente
acrescenta o respeito às “convencionadas anteriormente”. Não
é possível interpretar a referida disposição,
ignorando o advérbio “anteriormente”. Se ele não existisse na
frase, nenhuma alteração teria ocorrido. Sua inserção,
no entanto, aponta para sensível modificação. Ao decidir
o dissídio, o Tribunal terá como piso a garantia legal e como
teto as condições anteriormente pactuadas. Para solucionar um
dissídio coletivo entre categorias que, no passado, já houverem
pactuado, por exemplo, fixação de patamar superior a 50% para
o pagamento de horas extraordinárias, poderá o Tribunal do Trabalho
elevar o plus mínimo da Constituição até o limite
“anteriormente convencionado”.
Tal disposição supervaloriza, inequivocamente, a responsabilidade
na negociação e faz surgir, incidentalmente, um potencial efeito
abrangente das cláusulas fixadas por negociação coletiva.
Não importa quando, se já houve sobre o ponto consenso, o Tribunal
pode evocá-lo para, aí sim, no estreito espaço que restou
ao Poder Normativo, ressuscitar o acordado, convertendo-o em sentença
normativa.
Estreito braço de areia restou cercado de água por todos os
lados, na península do Poder Normativo, que se encontra no mar dos
conflitos coletivos.
4. Greve.
A Emenda Constitucional regulou, ainda, no plano do dissídio coletivo,
como exceção ao regime imposto às partes para ajuizarem
a demanda “de comum acordo”, no parágrafo seguinte do artigo
114, que tem a seguinte dicção:
“§ 3º - Em caso de greve em atividade essencial, com
possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério
Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo,
competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito”.
Ao lado
do quanto foi dito genericamente acerca do dissídio coletivo, acrescente-se
a possibilidade de ajuizamento pelo Ministério Público do Trabalho,
o que, de plano, afasta a anterior autoridade concedida ao próprio
Tribunal, como rezava o artigo
856 da C.L.T. O silêncio da Carta Política anterior outorgava
validade à norma ordinária – C.L.T. – para ampliar o rol de
titulares da iniciativa do processo. Ao apontar apenas o Ministério
Público do Trabalho, a Constituição exime de autorização,
tanto o Tribunal, na figura de seu presidente, quanto às partes.
Mas não é só.
A greve não basta para autorizar o dissídio coletivo sem o
“mútuo acordo”. Mister que seja greve em serviço essencial,
e, ainda, com “possibilidade de prejuízo ao interesse público”.
A paralisação dos serviços de transporte público
urbano em greve dos metroviários, por exemplo, tem nítido caráter
de serviço essencial. Ocorrida, no entanto, no curso de um prolongado
feriado, período em que não há expediente no comércio
e na maior parte das indústrias, inexiste a possibilidade de “lesão
do interesse público”, hipótese em que nem o Parquet poderá
suscitar intervenção jurisdicional.
5. O que está a caminho:
reforma sindical.
A partir dos consensos retirados do Fórum Nacional do Trabalho, iniciativa
do Governo Federal para instituir o debate prévio às reformas
trabalhista e sindical, uma comissão de técnicos formulou propostas
legislativas que estão – no curso do mês de fevereiro de 2005
– a caminho do Congresso Nacional26 .
Referidas inovações, no que tange ao funcionamento do dissídio
coletivo, fazem coro com as alterações insertas pela Emenda
Constitucional 45.
Revoga-se a unicidade (artigo 8º, II da Carta Atual), mantém-se
a exigência de “mútuo acordo” para ajuizamento do dissídio
coletivo e a faculdade de instauração do dissídio de
greve pelo Ministério Público do Trabalho.
De diferente, traz a inserção de algumas medidas que aperfeiçoarão
o sistema de controle das normas coletivas, a partir do artigo 205, com as
ações de anulação, declaração e
revisão. Por meio de tais mecanismos processuais, por iniciativa das
partes ou do Parquet, ao Tribunal será devolvida a autoridade
para rever pactos coletivos, acepção mais ampla do que o antigo
dissídio de revisão de sentença normativa, declará-los,
em franca substituição, também mais ampla, do que o dissídio
de interpretação, e, ainda, anulá-los, atividade hoje
realizada pela ação anulatória de ato jurídico.
Um largo capítulo dedica-se às ações coletivas
(artigo 137, título VII), regulando e esclarecendo a prática
jurisprudencial sobre o tema e, ainda, inovando para tipificar e punir eficazmente
as condutas anti-sindicais. Com isto, embora a matéria não seja
diretamente afeta ao dissídio coletivo, inegável é que
a atuação judicial sobre a relação entre as categorias,
através da negociação coletiva e da greve, ganhará
controle muito mais amplo e efetivo.
Pauta-se, no cerne, a reforma sindical, na matéria objeto deste artigo,
pelas premissas lançadas pela Emenda
Constitucional 45.
6. Conclusões.
A partir das breves ponderações, é possível
tirar a seguinte síntese, à guisa de conclusão, sobre
a nova ordem imposta pela Emenda
Constitucional 45 e pela Reforma Sindical:
(a) os dissídios coletivos poderão ter conteúdo apenas
econômico – retius, de interesse – e não mais de interpretação
ou revisão, até que seja aprovada a proposição
de reforma sindical;
(b) dependerão sempre da frustração da negociação
coletiva e da arbitragem;
(c) somente serão ajuizados por acordo entre as partes litigantes;
(d) a Justiça do Trabalho, ao decidi-los, não poderá
criar ou estabelecer normas não existentes no ordenamento positivo
ou nos acordos coletivos e convenções coletivas antes vigentes
entre as mesmas partes;
(e) o dissídio de greve não poderá mais ser instaurado
por iniciativa dos sindicatos envolvidos ou pelo Tribunal, mas pelo Ministério
Público do Trabalho, apenas e tão somente nos casos de greve
em serviço essencial, com possibilidade de lesão ao interesse
público.
O poder criativo dos Tribunais Trabalhistas restou esmorecido. A limitação
do ajuizamento de dissídios coletivos converte a Justiça do
Trabalho, no particular, em uma espécie de arbitragem pública,
facultativa.
Supervaloriza-se a negociação coletiva, com tais alterações,
mas, ao mesmo tempo, desamparam-se as categorias inorganizadas. Um novo patamar
de responsabilidade nas tratativas entre empregadores e empregados deve surgir
na prática da nova realidade constitucional.
Urge que tal medida faça-se suceder de providências que tornem
a representação sindical legítima e mais efetiva, como
parece decorrer da proposta de reforma sindical, sob pena de ter constituído
apenas involução das conquistas históricas dos trabalhadores.
Após o susto, como Gregor Samsa, de Kafka, os primeiros passos serão
de tentar a adaptação à nova realidade, com as mesmas
dificuldades de acordar de sonhos inquietantes na forma de um cascudo inseto.
Apenas o tempo assentará o juízo sobre as mudanças instituídas
no direito do trabalho, assim como sobre as conclusões destas primeiras
linhas.
1 Para este artigo,
utilizei algumas das idéias e dos argumentos inicialmente desenvolvidos
para “O esmorecimento do Poder Normativo – Análise de um aspecto restritivo
na ampliação da competência da Justiça do Trabalho”,
publicado in Coutinho, Grijalbo Fernandes e Fava, Marcos Neves, Nova Competência
da Justiça do Trabalho, São Paulo: 2005, LTR, página
276, dando-lhes o aprofundamento que o tempo já sugeriu.
2 Juiz do Trabalho Substituto na Segunda Região,
mestrando em direito do trabalho pela USP, professor de processo do trabalho
na Faculdade de Direito da FAAP – Fundação Armando Álvares
Penteado, Diretor de Ensino e Cultura da ANAMATRA – Associação
Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, biênio 2003-2005.
3
Bastos, Celso Ribeiro de, Curso de Direito Constitucional,
18ª edição, São Paulo: Saraiva, 1997, página
340.
4 Dallari, Dalmo de Abreu, Elementos da Teoria Geral
do Estado, 16ª edição atualizada e ampliada, São
Paulo: Saraiva, 1991, páginas 184-185.
5
Lenza, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 7ª edição,
revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Método, 2004, página
191.
6 Ceneviva, Walter, Direito Constitucional Brasileiro,
2ª edição, ampliada, São Paulo: Saraiva,
1991, página 40.
7
Pinto, José Augusto Rodrigues, Direito Sindical e Coletivo do Trabalho,
2ª edição, São Paulo: LTr, 2002, página
372.
8 Walter Ceneviva, op. cit, página 40: “o princípio
da tripartição ainda se mostra útil à democracia,
mas tem encontrado sérios óbices para o cumprimento de sua
finalidade quando o sistema verificador a ação dos poderes
e o equilibro entre eles é apenas forma, jurídico, mas abstrato,
pois um dos Poderes (em geral o Executivo) domina os demais”.
9 Hinz, Henrique Macedo, O Poder Normativo
da Justiça do Trabalho, São Paulo: LTR, 2000, página
51.
10 Registre-se que, antes da Constituição
de 1946, o Decreto-Lei 1237 de 1939 outorgava aos órgãos, então
administrativos, de solução dos conflitos trabalhistas, o poder
de criação de normas.
12
Holanda Ferreira, Aurélio Buarque de, Auríelo Século
XXI – o Dicionário da Língua Portuguesa , 3ª edição,
totalmente revista e ampliada, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999,
página 825, segundo sentido do vocábulo.
13 No que, aliás, não se afasta
literalmente de sua origem na “Carta Del Lavoro” de Benito Mussolini,
lei 1926/563, artigo 13.
14 Martins Filho, Ives Gandra da Silva, Processo
Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São Paulo:
LTr, 1996, página 13.
15 Direito Sindicatl e Coletivo do Trabalho,
2ª edição, São Paulo: LTr, 2002, página
370.
16
“O Poder Normativo da Justiça do Trabalho” in Revista Ltr, São
Paulo: LTr, setembro de 1991, volume 55, nº 9, página 1027.
17 Direito Coletivo do Trabalho, São
Paulo: LTr, 2001, página 33.
18 Poder Normativo da Justiça do Trabalho,
São Paulo: LTr, 1983, página 156.
19 “Instrução Normativa nº 4 –
Uma Questão de Vida ou de Morte” in Revista Síntese, Porto
Alegre: Síntese, junho de 2003, volume 168, página 5.
20
Delgado, Maurício Godinho, Direito Coletivo do Trabalho, São
Paulo: LTr, 2001, página 33.
21 Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª
edição, São Paulo: LTr, 2002, página 373.
22
TST – RODC 612177 – SDC – Rel. Min. Ronaldo José Lopes Leal – DJU
24.11.2000 – p. 482.
23
A história confirmou, depois, a ineficácia dessas multas, porque,
como noticiado amplamente, o Congresso Nacional emitiu, antes da cobrança
final das multas referidas, decreto legislativo isentando a Federação
de Trabalhadores das punições.
24
TST RODC nº 30/82, em 27.05.82, T. Pleno, Rel. Min. Coqueijo Costa.
DJ 12.08.82.
25 RE 197.911-9, 1ª Turma, Rel. Min. OCTÁVIO
GALLOTTI, proferido em 24.09.1996.
26
No sítio do ministério do trabalho e emprego (www.mte.gov.br)
há íntegra da proposição, acessada em 27 de fevereiro
de 2005.
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