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Primeiras linhas sobre a metamorfose do dissídio coletivo -  Emenda  Constitucional 45 e reforma sindical1

“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”.
Franz Kafka, A metamorfose
Marcos Neves Fava2

1. Introdução. 2. Dissídio coletivo: poder normativo. 3. Novo dissídio coletivo, emenda 45. 4. Greve. 5. O que está a caminho: reforma sindical. 6. Conclusões.
1. Introdução.

Como um assustado Gregor Samsa, de Kafka, acordam assustados do sono da Reforma do Judiciário os operadores do direito do trabalho, no que tange ao funcionamento do dissídio coletivo, que sofreu graves alterações que exigirão novos conceitos e nova compreensão do direito coletivo do trabalho.


A cultura trabalhista brasileira escora-se e  ampara-se no dissídio coletivo, de maneira apaixonada e marcante. O homem comum, quando se refere à época do ano em que, geralmente, os salários são realinhados – a data-base – costuma dizer “o mês do meu dissídio”, fato que ratifica a internação dessa modalidade de processo coletivo no inconsciente comum.


Este artigo procura analisar os reflexos da Emenda Constitucional 45 sobre o dissídio coletivo e apontar a congruência entre tais modificações e o projeto de lei apresentado pelo Executivo ao Legislativo, como resultado do Fórum Nacional do Trabalho, para  reordenação do direito sindical e das ações coletivas.


2. Dissídio coletivo: poder normativo.

A clássica divisão das atribuições do poder, lançada por Aristóteles, em sua Política, e detalhada por Montesquieu, n’o “Espírito das Leis”, impõe a visão moderna da organização do Estado, separando-se as funções estatais por sua atribuição a um dos três Poderes, que funcionam intimamente ligados, mas como órgãos autônomos e independentes. Registre-se que a idéia de “tripartição dos poderes” merece crítica, porque o poder, em si, é uno e indivisível; as funções, sim, dividem-se, segundo a vocação de cada órgão, definindo-se como “um modo particular e caracterizado de o Estado manifestar sua vontade”3 .


Explica Dalmo de Abreu Dallari o sistema de pesos e contrapesos em que se funda tal divisão: “Segundo essa teoria, os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são especiais. Os gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar, nem para prejudicar a uma pessoa ou a um grupo particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo por meio dos atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência”4 .


Os Poderes da República são “independentes e harmônicos entre si” (artigo 2º, Constituição Federal) e tal condição é garantida por cláusula pétrea, consoante estabelece o artigo 60, § 4º, III da Carta Maior.


Ao Executivo incumbe a chefia de Estado, a chefia de governo e os atos de administração, enquanto ao Legislativo atribui-se o dever de legislar e fiscalizar – contábil e financeiramente – o Executivo, encarregando-se, o Judiciário, da atividade de dizer o direito aplicável ao caso concreto, para a solução das lides que lhe são apresentadas. A Constituição Federal estatui, entretanto, para os mesmos poderes, funções que não lhe são características, como se dá com o julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal (artigo 52, I) ou quando o Legislativo dispõe sobre sua organização, o provimento de cargos e a atribuição de remuneração e férias (atividades típicas do Executivo); o Executivo legisla através das medidas provisórias (artigo 62) ou das leis delegadas (artigo 68), cria e extingue cargos (artigo 84, VI) e julga os litígios administrativos, no âmbito de sua atuação; o Judiciário, por fim, organiza-se administrativamente, ao conceder licenças, férias e estruturar seu  quadro funcional (medidas típicas do Executivo) e legisla, quando, por força do artigo 96, I, “a”, cria seus regimentos internos.


Daí considerar-se que cada um dos poderes da República realiza funções típicas ou atípicas5 . Para excepcioná-las, isto é, para que um dos poderes se entregue à realização de tarefa típica de outro, necessária expressa autorização da Constituição. Assinala Walter Ceneviva6 , que a delegação de funções não típicas constituiu solução inevitável, vez que o funcionamento estanque de cada Poder, exercendo exclusivamente suas atividades constitucionais ordinárias, não seria suficiente a atender as demandas sociais. Por se tratar de desvio excepcional dos trilhos da organização constitucional do Estado, a expressa atribuição, referida, deve surgir em situações “muito próximas do inevitável”7, evitando-se promiscuidade arriscada e comprometedora8  da independência dos poderes.


O Poder Normativo mostra, neste quadro, uma expressiva exceção à forma de organização dos Poderes da República, segundo o ordenamento vigente.


Embora a doutrina assinale sua instituição na Constituição Federal de 19379, a primeira Carta Política10  que concebe a jurisdicionalização da Justiça do Trabalho, a de 1946, foi a que trouxe, expressamente, a autorização de deslocamento da competência legislativa para o Judiciário, de forma específica, na solução de conflitos coletivos, in verbis:
“Artigo 123 – Compete â Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as demais controvérsias oriundas das relações do trabalho regidas por legislação especial”.

‘’§ 1º Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça Ordinária”.

“§ 2º A lei especificará os casos em que as decisões, nos dissídios coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho”11 .
A Constituição Federal de 1967 manteve idêntica redação, no primeiro parágrafo do artigo 134:
“§ 1º A lei especificará as hipóteses em que as decisões nos dissídios coletivos poderão estabelecer normas e condições de trabalho”.
Com a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, a matéria deslocou-se para o § 2º do artigo 142, com idêntica redação.

O Poder Normativo grassa livremente há décadas, não encontrando limites, nem mesmo em matéria legislada, tornando-se comum encontrarem-se cláusulas de sentenças normativas que reproduzem os ditames legais.


A autorização constitucional de transferência do poder legiferante para o Judiciário – em matéria laboral e diante da existência de conflito coletivo – vem fundada na expressão “estabelecendo normas”. Estabelecer, ensina-o Aurélio, é “criar, instituir, fundar”12 . O cerne da autorização constitucional inculca-se no verbo estabelecer13 , que se traduz pelo poder criativo do instituto em análise.


Define-se o poder normativo como aquele “constitucionalmente conferido aos Tribunais Trabalhistas de dirimirem os conflitos coletivos de trabalho mediante o estabelecimento de novas e mais benéficas condições de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em lei”14 . Ou, como leciona José Augusto Rodrigues Pinto15 : “é a competência determinada a órgão do poder judiciário para, em processo no qual são discutidos interesses gerais e abstratos, criar norma jurídica destinada a submeter à sua autoridade as relações jurídicas de interesse individual concreto na área da matéria legislada”.


A sentença normativa é resultado do caráter judicial da estruturação do Poder Normativo, segundo Octavio Bueno Magano16, e constitui,  como sintetiza Maurício Godinho Delgado17  “ato-regra (Duguit), comando abstrato (Carnelutti), constituindo-se em ato judicial (aspecto formal) criador de regras gerais, impessoais, obrigatórias e abstratas (aspecto material). É lei em sentido material, embora se preserve como ato judicial, do ponto de vista de sua produção e exteriorização”


Para Pedro Vidal Neto18, o referido poder constrói forma de integração da norma trabalhista, ampliando a atividade integradora de intérprete que exerce o Juiz nos dissídios coletivos, para que a equidade funcione como um meio de preenchimento de lacunas, nos dissídios coletivos. Nestes termos: “A atividade judiciária não se reduz à subsunção lógica e silogística, mas envolve a criação de normas jurídicas, que se desenvolve na aplicação e na interpretação do direito. Resumidamente, pode-se lembrar que o juiz não se exime de julgar, alegando a inexistência de norma jurídica adequada ao caso. Cabe-lhe descobrir a regra apropriada, mediante mecanismos de integração do direito, i.e., recorrendo à analogia, aos princípios gerais do direito e à eqüidade. Desse modo, são supridas as lacunas do direito”.


Esta peculiar forma de solução dos conflitos coletivos adotada pelo Brasil encontra-se, de há muito, no cerne de acirrado debate sobre a necessidade de sua manutenção. Relembra José Carlos Arouca19  que, na história, o poder normativo antecipou o conteúdo das convenções e acordos coletivos: “As decisões da Justiça do Trabalho determinavam o conteúdo das poucas convenções, que CID JOSÉ SITRÂNGULO desvendou através do tempo: No período de 1947 a 1952 eram apenas 5 cláusulas, três altamente restritivas: 2 a) aumento salarial (vez ou outra por faixas salariais); b) compensação dos aumentos concedidos na vigência do dissídio anterior; c) exclusão dos abonos; d) exclusão dos repousos remunerados; e) condicionamento do reajuste à assiduidade. Adiante, no período de 1953 a 1964, o avanço foi insignificante: a) reajustamento salarial; b) aplicação proporcional para os empregados admitidos após a data-base; c) piso salarial; d) teto de aumento; e) compensação dos aumentos anteriores à data-base; f) condicionamento do reajuste à capacidade econômica da empresa, ou sua capacidade financeira, ou ainda a sua capacidade econômico-financeira. Assim, se para os trabalhadores o piso foi bom, ruim foram as demais cláusulas. No período de 1965 a 1976, até onde chegou o levantamento, os acréscimos foram: a) fornecimento de comprovantes de pagamento; b) fornecimento gratuito de uniformes, quando necessários para a prestação do trabalho; c) estabilidade provisória para a gestante até dois meses após a licença compulsória; d) salário do substituto igual ao do empregado despedido sem justa causa; e) contribuição em favor do sindicato para a realização de obras sociais”.


Resta bem demonstrada a importância do instituto, ao garantir o avanço das normas protetivas do trabalhador, sem a fiança legislativa, através das decisões dos Tribunais do Trabalho, com função criadora, dita normativa. Justificam, alguns, sua mantença, sob os argumentos de que (a) o modelo alimenta uma valiosa fonte formal de normas jurídicas trabalhistas e (b) supre a falta ou a insuficiência de organização de algumas categorias para reivindicação de seus interesses.


Na trincheira oposta, por “traduzir fórmula de intervenção do Estado na gestão coletiva dos conflitos trabalhistas”20, o poder normativo tem sido duramente criticado. José Augusto Rodrigues Pinto, embora reconhecendo que, no plano individual, o apelo social da manutenção do poder legiferante dos Tribunais do Trabalho possa tutelar validamente interesses não protegidos por outras vias, assevera que “numa visão de conjunto, é nocivo para o amadurecimento do sindicalismo”21.


O polêmico instituto foi inserido, conclua-se, repetindo, no sistema constitucional  pátrio de 1988, pela expressão “estabelecer normas e condições”.


3. O novo dissídio coletivo: Emenda Constitucional 45.

Comparem-se, inicialmente, os textos vigente e o anterior, quanto à matéria em análise:
“Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

Que se compara com a anterior, vazada assim:

“Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”.
Do texto extraem-se diversas e pontuais diferenças, que dão novo caráter ao instituto, como se passa a analisar.

De primeiro, merece destaque a permanência do exaurimento da tentativa negocial, como condição de ajuizamento do dissídio coletivo. Ambos os textos constitucionais enunciam: “recusando-se qualquer das partes à negociação”. O Tribunal Superior do Trabalho, sob a antiga ordem constitucional, já havia firmado posição clara no sentido de constituir a prévia negociação exaurida em condição do ajuizamento da medida coletiva, o que se exemplifica com esta decisão relatada pelo Ministro Ronaldo Leal:


DISSÍDIO COLETIVO – AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS DE CONSTITUIÇÃO E DESENVOLVIMENTO VÁLIDO E REGULAR DO PROCESSO – A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o esgotamento da via negocial passou a ser elemento indispensável ao ajuizamento da ação coletiva (art. 114, § 2º). Pressupondo a instauração de instância o malogro das tentativas de composição amigável, deve o suscitante, primeiramente, comprovar nos autos que as condições de trabalho, objeto deste feito, foram aprovadas pela categoria de forma legal e que se encontra devidamente autorizado para negociá-las junto à classe patronal com a finalidade de firmar acordo ou convenção coletiva. Em segundo lugar, é necessário também que o suscitante demonstre, de forma cabal, haver tentado chegar, verdadeiramente, a uma composição amigável antes de buscar o pronunciamento desta justiça especializada. O sindicato profissional não atentou para as disposições contidas no seu estatuto, quando da convocação da categoria para a assembléia geral, e no art. 612 da CLT, no pertinente ao “quorum” legal necessário para a validade daquele evento, bem como não demonstrou o exaurimento das tentativas de negociação prévias, exigência constitucional para a instauração da instância coletiva. Inobservadas, pelo suscitante, formalidades imprescindíveis ao ajuizamento do dissídio coletivo, o processo é extinto sem apreciação do mérito, na forma do artigo 267, IV, do Código de Processo Civil.22 


O acórdão referencia “formalidades imprescindíveis ao ajuizamento do dissídio”, incluindo, entre as tais, a necessidade de as partes demonstrarem “haver tentado chegar, verdadeiramente, a uma composição amigável antes de buscar o pronunciamento desta justiça especializada”. A autocomposição forma a maneira natural de solução dos dissídios coletivos, porque solve a lide – ou evita que ela ecloda – sem intervenção Estatal. Apenas afastada de forma peremptória a saída consensual, as partes podiam, já na vigência do Texto de 1988, acorrer ao Judiciário.

Erigiu-se, então, interpretação – incorreta, antecipe-se – de existir um direito ao resultado positivo da negociação, noutras palavras, o direito das partes, obrigatoriamente, transigirem. Daí imaginar-se que o direito de acesso ao Judiciário (direito de ação), no plano do dissídio coletivo, corresponderia a um direito material de obter o resultado afirmativo da negociação, ou o acordo.

A nova Constituição da República estabelece o mesmo pré-requisito, firmando posição em favor da valorização da negociação livre entre as partes, na busca de uma sociedade mais justa e do aprimoramento das relações trabalhistas, com o conseqüente aparelhamento do rol de normas, já não pequeno, de proteção ao trabalho.


A seguir, as normas são, ainda, unívocas, ao endereçarem as partes à arbitragem, colocada como alternativa ao resultado negativo da negociação coletiva.


E param por aí as identidades.

A primeira grave alteração diz respeito à iniciativa ao dissídio coletivo. Restringiu, a Carta Política vigente, em muito, pela EC 45, o acesso a essa via de solução dos conflitos coletivos, ao estabelecer que, frustradas a negociação e a arbitragem, as partes só podem acorrer a Juízo por “mútuo acordo”. Paradoxo aparente. Se não transigiram, se não concordaram em caminhar para a arbitragem, poderão socorrer-se, por iniciativa recíproca, ao Judiciário?


Paradoxo apenas aparente.

Com efeito, para tachar de paradoxal a exigência do texto, preciso seria conceber a existência de um direito tutelável, que seria o direito ao acordo, ou o direito ao resultado positivo da negociação. Não atingido, prevaleceria, em face da garantia constitucional de acesso à jurisdição, a intervenção judicial, pelas mãos do Poder Normativo. Não existe, no entanto, no sistema pátrio, qualquer disposição que assegure aos interessados, o fim útil da negociação. O direito limita-se ao reconhecimento da validade, tão ampla quanto as demais normas heterogêneas do direito do trabalho, do resultado negocial a que, espontaneamente, cheguem as partes, na forma do artigo 7º, XXVI. Garantia de que todo processo negocial culminará em acordo não prevalece no sistema jurídico brasileiro.


Bom é notar que a OIT, por seu comitê de liberdades sindicais, já se manifestou sobre a matéria, referindo-se, por acaso, a um problema egresso do Brasil. Na greve dos petroleiros, eclodida com violência e persistência nos anos 90, o agente econômico, a Petrobrás, empregadora única dos trabalhadores dessa categoria profissional, suscitou dissídio coletivo, buscando solver o conflito, há muito deflagrado e que lhe trazia notórios prejuízos, com a paralisação praticamente total das unidades refinadoras. O Tribunal Superior do Trabalho foi acionado, por meio de dissídio coletivo, e prolatou decisão, a que não deram cumprimento os trabalhadores, fato que ensejou a aplicação de multas elevadíssimas23. A Central Única dos Trabalhadores, CUT, formalizou reclamação perante o Comitê de Liberdades Sindicais e obteve manifestação daquele importante órgão da Organização Internacional do Trabalho, no sentido de se constituir atentado à liberdade sindical – conduta anti-sindical – a possibilidade de um dos atores do embate coletivo requisitar interferência do Poder Judiciário.


As diferenças não cessam, no entanto, por aí.

A novel Constituição da República estatui, ainda, que, concordando ambas as partes, a única via de acesso ao Poder Judiciário será a do dissídio econômico, eliminando, por exclusão intencional, as demais formas de dissídios coletivos, antes presentes no ordenamento pátrio, como o de interpretação e o de revisão (artigo 873, C.L.T.). Enfaticamente, limitou o constituinte derivado reformador as hipóteses de acesso ao dissídio coletivo apenas aos de interesse, ou, pela letra da lei, os econômicos.


Na decisão do Tribunal, também modificação relevante encontra-se estampada no texto. Antes, podia a Corte “estabelecer” normas, vale dizer, criar novas regras, não previstas em lei, para satisfação do litígio. Hodiernamente, à luz da nova ordem constitucional, não há qualquer autorização para tanto.


Os limites do poder normativo oscilaram ao longo dos tempos e sob as diferentes perspectivas dos Tribunais Superiores. Relatada por Coqueijo Costa, antiga decisão do Tribunal Superior do Trabalho  procura estabelecer, com analogia geográfica, tais limites: "Poder normativo. 1. O poder normativo atribuído à Justiça do Trabalho limita-se, ao norte, pela Constituição Federal; ao sul, pela lei, a qual não pode contrariar; a leste, pela eqüidade e o bom senso; e a oeste, pela regra consolidada no artigo setecentos e sessenta e seis, conforme a qual nos dissídios coletivos serão estipuladas condições que assegurem justo salário aos trabalhadores, mas 'permitam também justa retribuição às empresas interessadas' 24."


Já o  Supremo Tribunal Federal, em mais de uma decisão, restringiu a operação do poder normativo, concluindo que as cláusulas criadas nas sentenças normativas "a despeito de configurarem fonte de direito objetivo, revestem o caráter de regras subsidiárias, somente suscetíveis de operar no vazio legislativo, e sujeitas à supremacia da lei formal (art. 114, § 2º da CF)25”. Segundo o Pretório Excelso, a criação de normas por meio do deslocamento da competência legislativa ocorreria apenas no vazio da lei e, ainda, quando não houvesse “reserva legal”. Vale dizer: não se poderia inovar por dissídio coletivo primário qualquer dos aspectos do direito do trabalho já regulados pela lei ou pela Constituição da República, assim como não se poderia invadir a competência do Legislativo, quando o ordenamento apontasse para a lei como fonte formal de determinado direito. Exemplo da primeira hipótese é o valor da hora extraordinária, já estabelecido em 50% pela Constituição Federal; exemplo da última é o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço “nos termos da lei”, previsto no inciso XXI do artigo 7º da Carta Política.


Ao extirpar da letra constitucional a expressão “estabelecendo normas”, o constituinte derivado tolheu os Tribunais Trabalhistas do exercício criativo de regras gerais e de aplicação irrestrita. Destaque-se, ainda, que, sob a égide da Constituição da República de 1988, a decisão haveria apenas de respeitar as garantias mínimas estabelecidas pela lei e pelas convenções, mas o texto vigente acrescenta o respeito às “convencionadas anteriormente”. Não é possível interpretar a referida disposição, ignorando o advérbio “anteriormente”. Se ele não existisse na frase, nenhuma alteração teria ocorrido. Sua inserção, no entanto, aponta para sensível modificação. Ao decidir o dissídio, o Tribunal terá como piso a garantia legal e como teto as condições anteriormente pactuadas. Para solucionar um dissídio coletivo entre categorias que, no passado, já houverem pactuado, por exemplo, fixação de patamar superior a 50% para o pagamento de horas extraordinárias, poderá o Tribunal do Trabalho elevar o plus mínimo da Constituição até o limite “anteriormente convencionado”.


Tal disposição supervaloriza, inequivocamente, a responsabilidade na negociação e faz surgir, incidentalmente, um potencial efeito abrangente das cláusulas fixadas por negociação coletiva. Não importa quando, se já houve sobre o ponto consenso, o Tribunal pode evocá-lo para, aí sim, no estreito espaço que restou ao Poder Normativo, ressuscitar o acordado, convertendo-o em sentença normativa.


Estreito braço de areia restou cercado de água por todos os lados, na península do Poder Normativo, que se encontra no mar dos conflitos coletivos.


4. Greve.

A Emenda Constitucional regulou, ainda, no plano do dissídio coletivo, como exceção ao regime imposto às partes para ajuizarem a demanda “de comum acordo”, no parágrafo seguinte do artigo 114, que tem a seguinte dicção:
“§ 3º - Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito”.
Ao lado do quanto foi dito genericamente acerca do dissídio coletivo, acrescente-se a possibilidade de ajuizamento pelo Ministério Público do Trabalho, o que, de plano, afasta a anterior autoridade concedida ao próprio Tribunal, como rezava o artigo 856 da C.L.T. O silêncio da Carta Política anterior outorgava validade à norma ordinária – C.L.T. – para ampliar o rol de titulares da iniciativa do processo. Ao apontar apenas o Ministério Público do Trabalho, a Constituição exime de autorização, tanto o Tribunal, na figura de seu presidente, quanto às partes.

Mas não é só.

A greve não basta para autorizar o dissídio coletivo sem o “mútuo acordo”. Mister que seja greve em serviço essencial, e, ainda, com “possibilidade de prejuízo ao interesse público”. A paralisação dos serviços de transporte público urbano em greve dos metroviários, por exemplo, tem nítido caráter de serviço essencial. Ocorrida, no entanto, no curso de um prolongado feriado, período em que não há expediente no comércio e na maior parte das indústrias, inexiste a possibilidade de “lesão do interesse público”, hipótese em que nem o Parquet poderá suscitar intervenção jurisdicional.


5. O que está a caminho: reforma sindical.

A partir dos consensos retirados do Fórum Nacional do Trabalho, iniciativa do Governo Federal para instituir o debate prévio às reformas trabalhista e sindical, uma comissão de técnicos formulou propostas legislativas que estão – no curso do mês de fevereiro de 2005 – a caminho do Congresso Nacional26 .


Referidas inovações, no que tange ao funcionamento do dissídio coletivo, fazem coro com as alterações insertas pela Emenda Constitucional 45.


Revoga-se a unicidade (artigo 8º, II da Carta Atual), mantém-se a exigência de “mútuo acordo” para ajuizamento do dissídio coletivo e a faculdade de instauração do dissídio de greve pelo Ministério Público do Trabalho.


De diferente, traz a inserção de algumas medidas que aperfeiçoarão o sistema de controle das normas coletivas, a partir do artigo 205, com as ações de anulação, declaração e revisão. Por meio de tais mecanismos processuais, por iniciativa das partes ou do Parquet, ao Tribunal será devolvida a autoridade para rever pactos coletivos, acepção mais ampla do que o antigo dissídio de revisão de sentença normativa, declará-los, em franca substituição, também mais ampla, do que o dissídio de interpretação, e, ainda, anulá-los, atividade hoje realizada pela ação anulatória de ato jurídico.


Um largo capítulo dedica-se às ações coletivas (artigo 137, título VII), regulando e esclarecendo a prática jurisprudencial sobre o tema e, ainda, inovando para tipificar e punir eficazmente as condutas anti-sindicais. Com isto, embora a matéria não seja diretamente afeta ao dissídio coletivo, inegável é que a atuação judicial sobre a relação entre as categorias, através da negociação coletiva e da greve, ganhará controle muito mais amplo e efetivo.


Pauta-se, no cerne, a reforma sindical, na matéria objeto deste artigo, pelas premissas lançadas pela Emenda Constitucional 45.


6. Conclusões.

A partir das breves ponderações, é possível tirar a seguinte síntese, à guisa de conclusão, sobre a nova ordem imposta pela Emenda Constitucional 45 e pela Reforma Sindical:


(a) os dissídios coletivos poderão ter conteúdo apenas econômico – retius, de interesse – e não mais de interpretação ou revisão, até que seja aprovada a proposição de reforma sindical;


(b) dependerão sempre da frustração da negociação coletiva e da arbitragem;


(c) somente serão ajuizados por acordo entre as partes litigantes;


(d) a Justiça do Trabalho, ao decidi-los, não poderá criar ou estabelecer normas não existentes no ordenamento positivo ou nos acordos coletivos e convenções coletivas antes vigentes entre as mesmas partes;


(e) o dissídio de greve não poderá mais ser instaurado por iniciativa dos sindicatos envolvidos ou pelo Tribunal, mas pelo Ministério Público do Trabalho, apenas e tão somente nos casos de greve em serviço essencial, com possibilidade de lesão ao interesse público.


O poder criativo dos Tribunais Trabalhistas restou esmorecido. A limitação do ajuizamento de dissídios coletivos converte a Justiça do Trabalho, no particular, em uma espécie de arbitragem pública, facultativa.


Supervaloriza-se a negociação coletiva, com tais alterações, mas, ao mesmo tempo, desamparam-se as categorias inorganizadas. Um novo patamar de responsabilidade nas tratativas entre empregadores e empregados deve surgir na prática da nova realidade constitucional.


Urge que tal medida faça-se suceder de providências que tornem a representação sindical legítima e mais efetiva, como parece decorrer da proposta de reforma sindical, sob pena de ter constituído apenas involução das conquistas históricas dos trabalhadores.


Após o susto, como Gregor Samsa, de Kafka, os primeiros passos serão de tentar a adaptação à nova realidade, com as mesmas dificuldades de acordar de sonhos inquietantes na forma de um cascudo inseto. Apenas o tempo assentará o juízo sobre as mudanças instituídas no direito do trabalho, assim como sobre as conclusões destas primeiras linhas.



1 Para este artigo, utilizei algumas das idéias e dos argumentos inicialmente desenvolvidos para “O esmorecimento do Poder Normativo – Análise de um aspecto restritivo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho”, publicado in Coutinho, Grijalbo Fernandes e Fava, Marcos Neves, Nova Competência da Justiça do Trabalho, São Paulo: 2005, LTR, página 276, dando-lhes o aprofundamento que o tempo já sugeriu.
2 Juiz do Trabalho Substituto na Segunda Região, mestrando em direito do trabalho pela USP, professor de processo do trabalho na Faculdade de Direito da FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado, Diretor de Ensino e Cultura da ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, biênio 2003-2005.
3 Bastos, Celso Ribeiro de, Curso de Direito Constitucional, 18ª edição, São Paulo: Saraiva, 1997, página 340.
4 Dallari, Dalmo de Abreu, Elementos da Teoria Geral do Estado, 16ª edição atualizada e ampliada, São Paulo: Saraiva, 1991, páginas 184-185.
5 Lenza, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 7ª edição, revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Método, 2004, página 191.
6 Ceneviva, Walter, Direito Constitucional Brasileiro, 2ª edição, ampliada,  São Paulo: Saraiva, 1991, página 40.
7  Pinto, José Augusto Rodrigues, Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São Paulo: LTr, 2002, página 372.
8 Walter Ceneviva, op. cit, página 40: “o princípio da tripartição ainda se mostra útil à democracia, mas tem encontrado sérios óbices para o cumprimento de sua finalidade quando o sistema verificador a ação dos poderes e o equilibro entre eles é apenas forma, jurídico, mas abstrato, pois um dos Poderes (em geral o Executivo) domina os demais”.
9  Hinz, Henrique Macedo, O Poder Normativo da Justiça do Trabalho, São Paulo: LTR, 2000, página 51.
10 Registre-se que, antes da Constituição de 1946, o Decreto-Lei 1237 de 1939 outorgava aos órgãos, então administrativos, de solução dos conflitos trabalhistas, o poder de criação de normas.
11 Disponível em www.presidenciarepublica.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm acessado em 30 de dezembro de 2004, sem grifos.
12 Holanda Ferreira, Aurélio Buarque de, Auríelo Século XXI – o Dicionário da Língua Portuguesa , 3ª edição, totalmente revista e ampliada,  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, página 825, segundo sentido do vocábulo.
13  No que, aliás, não se afasta literalmente de sua origem na “Carta Del Lavoro” de Benito Mussolini,  lei 1926/563, artigo 13.
14 Martins Filho, Ives Gandra da Silva, Processo Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São Paulo: LTr, 1996, página 13.
15  Direito Sindicatl e Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São Paulo: LTr, 2002, página 370.

16  “O Poder Normativo da Justiça do Trabalho” in Revista Ltr, São Paulo: LTr, setembro de 1991, volume 55, nº 9, página 1027.
17  Direito Coletivo do Trabalho, São Paulo: LTr, 2001, página 33.
18  Poder Normativo da Justiça do Trabalho, São Paulo: LTr, 1983, página 156.
19 “Instrução Normativa nº 4 – Uma Questão de Vida ou de Morte” in Revista Síntese, Porto Alegre: Síntese, junho de 2003, volume 168, página 5.

20 Delgado, Maurício Godinho,  Direito Coletivo do Trabalho, São Paulo: LTr, 2001, página 33.
21 Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª edição, São Paulo: LTr, 2002, página 373.

22 TST – RODC 612177 – SDC – Rel. Min. Ronaldo José Lopes Leal – DJU 24.11.2000 – p. 482.
23 A história confirmou, depois, a ineficácia dessas multas, porque, como noticiado amplamente, o Congresso Nacional emitiu, antes da cobrança final das multas referidas, decreto legislativo isentando a Federação de Trabalhadores das punições.
24 TST RODC nº 30/82, em 27.05.82, T. Pleno, Rel. Min. Coqueijo Costa. DJ 12.08.82.
25 RE 197.911-9, 1ª Turma, Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI, proferido em 24.09.1996.

26 No sítio do ministério do trabalho e emprego (www.mte.gov.br) há íntegra da proposição, acessada em 27 de fevereiro de 2005.



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